Na semana que passou, o Theatro Municipal de São Paulo apresentou a última ópera de sua temporada, Maria de Buenos Aires, de Astor Piazzolla, com libreto de Horacio Ferrer.
Em que pese a beleza da música e da história contada no libreto, mais uma vez o identitarismo agiu para tornar desagradável a experiência do expectador que foi ao Municipal para assistir à ópera. A experiência ruim não se deu pela execução da orquestra ou pela apresentação dos cantores. O problema mesma acaba sendo na montagem da peça, onde o identitarismo pode agir mais livremente.
A música e o libreto são partes difíceis de serem mexidas, embora seja importante dizer que é nítido o esforço para deturpar também esses dois pontos fundamentais da ópera.
No começo do espetáculo, uma voz se apresente como uma “puta do Maranhão” e explica para o expectador que a história de Maria de Buenos Aires pode ser a história de muitas mulheres que se prostituem. Enquanto isso, no telão, uma mulher fantasiada de prostituta passa batom.
A partir daí, a ópera começa de fato. Entram em cena a orquestra, os cantores, o declamador, o coro, dançarinos e no meio disso tudo, os produtores da peça optaram por deixar quatro pessoas fantasiadas de prostitutas, que nos créditos da ópera são apresentadas como “atrizes performers”. As quatro ficam por ali, na maioria das vezes simplesmente disputando a atenção do público.
Atenção que é ainda mais prejudicada pelo excesso de informações. Não sabemos se é uma tentativa de parecer moderninho, mas em várias montagens do Municipal, optou-se pelo uso de telões. O uso é excessivo. A encenação fica poluída com tantas informações desnecessárias ao mesmo tempo.
No caso da montagem de Maria de Buenos Aires havia momentos em que a atenção do público era dividida em cinco ou seis coisas diferentes acontecendo ao mesmo tempo.
Nos parece que esse excesso de informações e o uso de telões é um recurso fácil encontrado pela cenografia para tentar chamar a atenção para tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. O problema é que, com isso, ao invés de resolverem o problema, acabaram apenas introduzindo mais um elemento para disputar a atenção do público.
Essa necessidade de mostrar as coisas num telão enorme parece estar ligada ao identitarismo. Todos precisam ser igualmente mostrados, todos devem ter a mesma importância. Ou seja, numa ópera, a música e os cantores teriam o mesmo peso que um ator que aparecesse duas vezes durante o espetáculo.
Essa ideia não só é falsa como é pura demagogia. O moralismo substitui a realidade artística. Obviamente que numa montagem tão complexa quanto à de uma ópera, todos os artistas e trabalhadores são importantes para fazer aquele espetáculo funcionar. Mas do ponto de vista da arte não é assim. Numa peça de teatro, os atores são os destaques do espetáculo, se há trilha sonora, nem assim o músico vai se tornar tão destacado quanto os atores. Na ópera, os cantores são os maiores destaques, é assim que funciona.
Se os cenografistas e montadores contratados pelo Municipal desejam subverter essa verdade artística, não recorram ao moralismo, inimigo da arte. Façam outro espetáculo, escrevam outra ópera, inventem outro tipo de encenação. O que não é de bom tom é vandalizar a obra alheia. Piazzolla, coitado, nem está aqui para se defender.
E é esse moralismo careta, reacionário e anti-artístico que faz com que a encenação esfregue na cara do público a explicação de que a Maria de Buenos Aires também poderia ser uma “puta do Maranhão”. O expectador, esse inculto, não abe que há prostituição no Brasil. Então, a montagem do Municipal optou por esfregar isso na cara do público.
Além de ser de mau gosto, tal opção fere o andamento da peça. Mas não é só isso, fazer uma espécie de advertência sobre a obra, em geral não é tarefa daqueles que a estão apresentando. O público deve ter o direito de interpretar a obra como ele quiser, deve ter o direito inclusive de achar que Maria de Buenos Aires não é um puta como um puta do Maranhão, o que, no frigir dos ovos, não seria mesmo, só pelo fato de estarem em lugares diferentes e épocas diferentes.
Essas advertências moralistas criadas pelo identitarismo são uma forma de deformar e vandalizar a obra de arte. Estão levando para a ópera o esquema adotado nos museus de São Paulo que, abaixo de cada quadro ou escultura tem uma explicação idiota sobre como aquela obra “reflete o seu tempo” ou coisas assim, em alusão ao suposto racismo, machismo, homofobia ou seja lá mais o que.