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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

‘A Metamorfose’ – Franz Kafka

Resenha Livro - “A Metamorfose” – Franz Kafka – Ed. L&PM

Franz Kafka faleceu na data de 03 de junho de 1924, quando tinha quarenta anos de idade.

Sua morte foi particularmente dolorosa. Sete anos antes do óbito, foi diagnosticado com tuberculose, numa época em que ainda não havia tratamento para a doença. A infecção se estendeu à laringe, impossibilitando-o de se alimentar, também numa época em que não existia nutrição parenteral. Por não haver meios de alimentá-lo, sua vida foi lentamente se extinguindo até morrer de fome. Foi desmilinguindo aos poucos, tal qual o protagonista Gregor Samsa, de “A Metamorfose” (1912).

Ao tempo do falecimento, Kafka era um escritor desconhecido. Seus contos, até então, só tinham sido publicados em algumas revistas literárias, para um público bastante restrito. Hoje é considerado um dos mais importantes escritores do século XX, com uma vasta crítica em torno da sua obra, através de estudos de intelectuais do porte de Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Walter Benjain e Theodor W. Adorno. Tornou-se tão importante que o seu nome se converteu num adjetivo. Hoje quando se diz que certa situação é “kafkaniana”, estamos querendo falar de algo que é estranho, labiríntico, ininteligível e surreal.

E isto só se tornou possível graças ao seu amigo e testamenteiro Max Brod que publicou os seus textos entre 1925 e 1935.

O mais interessante é que esse colega, com quem Kafka manteve amizade desde a Faculdade de Direito de Praga, descumpriu a ordem de lançar toda a sua obra no fogo. Felizmente, Max Brod ignorou o pedido do amigo e reuniu os escritos e anotações de Kafka para lançá-los, ainda que de forma incompleta e fragmentada.

De fato, Franz Kafka não chegou a terminar nenhum romance. Livros conhecidos como “O Processo” e “O Castelo” são, na verdade, obras inacabadas. A maior parte foram os contos. O mais conhecido deles, certamente, foi “A Metamorfose”, escrito em 1912 e publicado em 1915 numa revista literária alemã.

Nascido em Praga, à época parte do Império Austro Húngaro, Franz Kafka adveio de uma família judaica de classe média. Seu pai foi um negociante, um homem descrito como egoísta, forte e arrogante, e a sua figura intimidadora se projeta em contos como “A Metamorfose” e particularmente em “O Veredicto”. Um aspecto comum, nesses dois casos, é a figura paterna que desperta o medo, o ódio e a culpa. Trata-se de um sentimento de hostilidade que remete à tragédia de Édipo. Tanto em “A Metamorfose”, quanto em “O Veredito”, o conflito se resolve pelo sacrifício do filho através da morte como um meio de aliviamento da culpa. Gregor Samsa, tornado um inseto repugnante em “A Metamorfose”, desaparece como se desistisse de viver, enquanto o protagonista de “O Veredicto” resolve o complexo edipiano, após uma briga com o pai que não concorda com o casamento do filho, através do suicídio.

O que se percebe, no caso da literatura de Franz Kafka, é um forte conteúdo autobiográfico.

A percepção depreciativa de si mesmo, ao que consta, era algo presente no escritor, que alimentava a crença que as pessoas em geral lhe devotavam repulsa física e moral.

Não é uma rejeição por algo que foi feito de errado mas por aquilo que o sujeito é, sem a existência do dolo ou da culpa. Essa realidade incontornável da rejeição é elevada até o ponto mais dramático na figura de Gregor Samsa, quando num certo dia, depois de acordar de sonos intranquilos, viu-se transformado num inseto repulsivo.

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldades. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume de resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. ‘O que terá acontecido comigo’? Não era um sonho.”.

Assim começa o conto.

O protagonista é um caixeiro viajante de uma firma de tecidos. Vive num apartamento simples com o pai, a mãe e a irmã mais nova, que são por ele sustentados, desde quando a firma comercial do chefe de família entrou em falência.

Após a metamorfose, aquele grupo familiar, até então numa situação cômoda de ser sustentada por Gregor, rejeita o filho e basicamente o mantém no quarto, longe dos olhos do mundo, como se fosse motivo de vergonha. Até então, Gregor nunca havia faltado ao trabalho, nem mesmo por conta de uma doença. No dia fatídico, sua primeira preocupação é a explicação que daria por estar atrasado no serviço. Um supervisor do escritório em que trabalha comparece na residência para averiguar a razão do seu atraso e sai de lá repugnado.

Samsa, antes e depois da sua transformação, aparenta ter uma obediência incondicional à família, ao pai e ao chefe da firma. Sua vida, até o dia em que se transformou num inseto, é orientada pelo cumprimento incondicional de um dever: trabalhar e sustentar a família. Sonhava, ainda, em matricular sua irmã adolescente num conservatório para estudar violino. Mas o dever não parece estar relacionado a uma relação de afeto e amor no seio familiar. Parece antes uma sujeição passiva da realidade, não muito diferente da alienação a que o trabalhador está sujeito na sociedade capitalista.

Depois de se transformar num inseto monstruoso, a sua preocupação segue sendo a família e o trabalho, mas agora se manifestando na forma de culpa. Na medida em que a sua figura causa vergonha e nojo aos familiares, opta por permanecer escondido dentro do quarto, de baixo de um canapé, sem permitir ser visto. De lá, apenas escuta as conversas da sala, feitas em voz baixa, na qual se evidencia progressivamente o abandono e a desumanização de Gregor. Não se sabe o que dizem, mas se presume que fazem planos para se livrar da melhor forma possível daquele problema.

A morte física de Gregor é apenas o coroamento final de sua morte moral, esta última ocorrendo de forma paulatina. Ao final da história, quando uma faxineira da casa o encontra morto, a novidade dá ensejo ao renascimento da família. Depois da morte de Gregor, os pais e a irmã saem daquela posição passiva para ter alguma iniciativa diante da vida. O pai parece querer retomar o trabalho produtivo e a irmã mais nova é encaminhada a um casamento com olhos para um futuro mais feliz. No mesmo dia da morte de Samsa, aliviados, os familiares saem a um passeio e fazem planos para o amanhã. É tempo da primavera, que expressa de uma mesma forma, o renascer, mas da natureza.

O mais famoso conto de Franz Kafka agrega o realismo e o fantástico. O absurdo emerge subitamente da realidade banal e se impõe como a nova normalidade. A história, também, parece seguir o mesmo itinerário dos nossos sonhos, que frequentemente descrevem detalhes realistas precisos da nossa vida convivendo com coisas absurdas. A transformação do homem num inseto, que representa o sobrenatural e o fantástico, exsurge da banalidade do cotidiano familiar e da rotina do trabalho. Tal qual nos sonhos, em que vemos também detalhes da realidade interagindo com o absurdo.

E, ao fim, o desaparecimento de Gregor, além do despertar da família, e o desabrochar da primavera, é o coroamento da realidade definitivamente se impondo à fantasia. O livro começa quando Samsa acorda para um mundo fantástico e termia com a sua morte, que representa o despertar da realidade.

Bibliografia

MERÇON, Francisco Elias Simão. “Uma Leitura Analítica da Novela A Metamorfose de Franz Kafka”. Dissertação de Mestrado. FFLCH/USP.

A Metamorfose – Franz Kafka

O Veredito – Franz Kafka

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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