Em coluna publicada no portal Brasil 247 nesse domingo (4), o articulista Jeferson Miola defende que “É urgente (…) a necessidade de aprovação no Brasil do PL 2630/2020 que institui a Lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet“. O PL 2630/20 é também conhecido como PL da Censura, ou PL da Globo. O mais interessante do artigo, porém, é a tese que o colunista utiliza para chegar à conclusão de tal urgência na aprovação da lei.
Apoiando-se num relatório publicado pelo instituto de pesquisa V-Dem, baseado na Suécia, e nas ideias da professora de assuntos internacionais da Universidade da Califórnia, Barbara F. Walter, Miola argumenta que o advento da Internet e a expansão das redes sociais seriam responsáveis pelo declínio das democracias. Para ele, haveria uma relação de causa e efeito entre “o advento da internet, a introdução de smartphones e o uso generalizado das redes sociais” e a “queda global da democracia”.
Miola afirma, com base no instituto sueco, que “a partir de 2010 começou ocorrer o declínio marcante das democracias liberais em todo o mundo”. Tal declínio teria lugar, segundo o colunista, não só nos países de larga tradição democrática, mas também naqueles onde a democracia é fenômeno mais recente.
A tese absurda, mas adquire tons exageradamente cômicos quando o autor procura exemplificar num caso particular sua tese. Ele, surpreendentemente, recorre ao exemplo do continente africano. Sim: o continente africano!
Miola nos esclarece que o continente africano, até pouco tempo atrás, não havia aderido à tendência que se observa mundialmente, já que seus países eram aqueles em que a Internet tinha menos penetração em todo o mundo. Tudo começou a mudar em meados da década passada, destaca o colunista. Miola, então, cita a estudiosa norte-americana: “o acesso à internet começou a melhorar no continente em 2014, quando as redes sociais se transformaram no principal meio de comunicação“. O instituto V-Dem vem logo na sequência, em auxílio, e decreta: “em 2019 o V-Dem identificou taxas declinantes de democracia na África subsaariana, sinal de que o continente passou a seguir o padrão mundial”.
“À medida que a internet se expandiu e o Facebook, Youtube e X/Twitter penetraram fundo nas sociedades nacionais africanas, aumentaram as instabilidades, as crises e as disputas internas, sobretudo entre facções étnicas ou religiosas”, conclui Miola.
A tese é tão absurda, mas tão absurda, que dá a entender que até o advento da Internet e a entrada em cena de Facebook, Instagram e YouTube, o continente africano usufruia da mais poderosa e saudável democracia de que se tem notícia. As crises, instabilidades, conflitos, golpes de Estado, guerras etc. teriam sido obra da Internet e das redes sociais. Internet e redes sociais que penetraram mais largamente nos países do continente em meados da década passada. Nas décadas anteriores, portanto, somos obrigados a concluir que a África dormia tranquila, sem crises, instabilidades, conflitos, guerras entre facções e assim por diante. Superando o caráter cômico que ela traz imediatamente numa primeira leitura, a tese é absolutamente grotesca.
Miola transforma a Internet e as redes sociais em verdadeiros demônios. Na visão de Miola, a Internet se converte numa espécie de entidade sobrenatural, mítica ou religiosa, com o poder de corromper as até então sacrossantas democracias que dominavam, serenas, o planeta. Trata-se de uma visão totalmente fantasiosa e reacionária.
Miola, com a ajuda das fontes citadas, formula uma história evolutiva das “democracias” com o objetivo de demonizar a Internet. Afinal, o marco do declínio das democracias seria o advento e penetração da Internet nos países.
Essa concepção simplesmente joga na lata do lixo o caráter positivo que o advento da Internet representou para as liberdades democráticas em todos os países, especialmente em países africanos. Enquanto os jornais, a televisão e o rádio constituíam ferramentas exclusivas dos grandes monopólios capitalistas, a Internet oferece um espaço amplo e relativamente livre para que outras forças, grupos e mesmo indivíduos, tradicionalmente excluídos da possibilidade de utilizar recursos de comunicação, se organizassem e utilizassem as novas ferramentas. Desse ponto de vista, não houve qualquer declínio da democracia com o advento da Internet. Muito pelo contrário.
É certo que os grandes monopólios capitalistas também entraram na Internet e passaram a dominar e controlar os novos recursos. O domínio dos monopólios capitalistas na Internet, nesse sentido, significou a imposição de limites nas possibilidades desta. Miola, no entanto, não faz nenhuma ressalva quanto a isso, e simplesmente joga a culpa na Internet em geral.
Ao fim e ao cabo, travando uma cruzada contra a Internet, Miola, na verdade trabalha para a volta do mundo em que a Rede Globo reinava soberana, quase sem concorrentes. Sua defesa do PL da Censura esconde esse fato.