Nessa série de artigos sobre a cobertura da imprensa sobre a guerra na Ucrânia e na Palestina fica evidente a diferença total. No caso da Ucrânia, as milícias nazistas financiadas pela OTAN são consideradas resistência e exaltadas. No caso da Palestina, os grupos de resistência que lutam contra o Estado genocida de “Israel”, apoiado pelo imperialismo, são considerados terroristas. O New York Times, um dos mais importantes jornais do mundo, é o perfeito exemplo disso.
O NYT glorifica, humaniza e legitima inequivocamente o exército ucraniano e os grupos de resistência civil clandestina. Isso contrasta fortemente com o tratamento do NYT em relação ao Hamas e outras formas de resistência palestina, que geralmente são retratados como terroristas e raramente têm suas motivações, perspectivas ou estratégias explicadas.
Talvez o exemplo mais condenável seja o artigo “Behind Enemy Lines, Ukrainians Tell Russians ‘You Are Never Safe’”, que apareceu na primeira página em 18 de agosto de 2022. O NYT glorifica a guerra de guerrilha, justifica assassinatos de colaboradores e atos de sabotagem industrial e, notavelmente, elogia os guerrilheiros ucranianos por “se misturarem à população local”. Em outro artigo enquadrado de maneira semelhante, “‘This is True Barbarity:’ Life and Death Under Russian Occupation”, a publicação descreve as táticas de resistência de uma pequena cidade ucraniana que foi ocupada pelos russos no início da guerra:
“Logo no início da ocupação, os policiais de Trostyanets tiraram seus uniformes e se misturaram à população. Aqueles que faziam parte da Defesa Territorial da Ucrânia, equivalente à Guarda Nacional, se deslocaram para a periferia da cidade e trabalharam como guerrilheiros — documentando o movimento das tropas russas e reportando ao exército ucraniano.”
Na sua recontagem da luta ucraniana para defender as usinas siderúrgicas de Azovstal em Mariupol (Última Resistência em Azovstal: Dentro do Cerco que Moldou a Guerra na Ucrânia), o NYT não critica o Regimento Azov por se abrigar entre civis. Pelo contrário, retrata isso como o resultado lógico de um exército “em desvantagem” lutando uma guerra defensiva.
“Durante os próximos 80 dias, Azovstal seria um fulcro da guerra, enquanto a brutalidade russa colidia com a resistência ucraniana. O que começou como um acidente — civis e soldados barricados juntos dentro de um complexo industrial quase duas vezes maior que o centro de Manhattan — tornou-se um cerco sangrento, enquanto cerca de 3.000 combatentes ucranianos mantinham uma força russa muito maior atolada em um pântano que trouxe miséria e morte para ambos os lados.”
Não precisamos usar muita imaginação para imaginar a propaganda de “escudos humanos” que seria usada se o Hamas se abrigasse em um complexo industrial com centenas de civis palestinos. Em um boletim matinal, “Os Túneis Vitais de Gaza”, por exemplo, Leonhardt escreve:
“Hamas escondeu muitas armas sob hospitais, escolas e mesquitas, de forma que Israel corre o risco de matar civis e enfrentar uma reação internacional ao lutar. Combatentes do Hamas também se movem acima e abaixo do solo, misturando-se com civis.
Essas práticas significam que o Hamas é responsável por muitas das mortes de civis, de acordo com o direito internacional … Deliberadamente posicionar recursos militares perto de civis e disfarçar combatentes como civis são violações das leis de guerra.”
Em outro artigo, o NYT lançou dúvidas sobre um relatório da Anistia Internacional que acusava o exército ucraniano de colocar civis em perigo ao operar em áreas residenciais, escolas e hospitais. O artigo quase exclusivamente apresenta ucranianos, observadores internacionais e especialistas jurídicos que argumentam que o exército ucraniano não tem escolha a não ser operar em áreas civis — e que o relatório da Anistia está simplesmente alimentando a propaganda russa.
“[O relatório] foi recebido com uma condenação generalizada e quase universal na Ucrânia, que tem se defendido contra um exército russo que tem muito mais poder de fogo, o qual tem usado para dizimar áreas urbanas e para torturar e matar milhares de civis.”
Esconder-se entre civis é uma acusação direcionada ao Hamas para justificar as atrocidades israelenses. Massacres em hospitais, locais de distribuição de ajuda, escolas, cidades de tendas de refugiados — todos foram justificados pela suposta presença de combatentes do Hamas, o que NYT sempre lembra que é uma violação do direito internacional.
Mas na Ucrânia, o NYT defende as táticas de guerrilha e retrata de forma favorável os funcionários ucranianos que afirmam que a invasão russa “deixou o exército do país em uma posição cada vez mais difícil: Eles estão colocando mais civis em perigo com sua presença, mas, especialmente em cidades maiores, têm cada vez menos opções em relação a onde podem posicionar suas forças.”
O raro caso em que NYT reporta sobre as táticas de guerrilha do Hamas é narrado sob a perspectiva dos EUA-“Israel”, e responsabiliza diretamente o Hamas pelas mortes em masse de civis por “Israel”.
“Eles se escondem sob bairros residenciais, armazenando suas armas em quilômetros de túneis e em casas, mesquitas, sofás — até mesmo no quarto de uma criança — desfocando a linha entre civis e combatentes.”
“Às vezes, eles se escondiam entre os poucos civis que decidiram permanecer em seus bairros, apesar das ordens israelenses de evacuar, ou acompanhavam civis quando retornavam a áreas que os israelenses haviam capturado e depois abandonado.”
“A decisão do Hamas de continuar lutando provou ser desastrosa para os palestinos de Gaza … Funcionários israelenses dizem que as táticas do Hamas explicam por que Israel foi forçado a atacar tanta infraestrutura civil, matar tantos palestinos e deter tantos civis.”
O NYT apresenta os civis e combatentes da resistência ucraniana como guerreiros corajosos e firmes: “Embora enormemente superados em armas, o exército da Ucrânia e um crescente corpo de voluntários civis estão montando uma defesa vigorosa da capital“. O jornal não finge uma perspectiva de “ambos os lados” nem tenta minar a resistência: O direito ucraniano de enfrentar a invasão e ocupação com luta armada é assumido e validado em todos os momentos.
Civis palestinos que se alinham ao Hamas ou participam de outras atividades de resistência perdem sua condição de protegidos aos olhos do NYT. Um exemplo proeminente é a cobertura da acusação israelense de que alguns funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) estavam ligados ao Hamas e aos ataques de 7 de outubro. A própria acusação já foi suficiente para que o NYT participasse da propagação da mentira israelense. Em poucos dias, a maioria do financiamento internacional foi retirado da UNRWA — que emprega 14.000 pessoas em Gaza e participa de todos os aspectos da infraestrutura social, especialmente depois que “Israel” impôs um bloqueio à Faixa de Gaza em 2007. A UNRWA é o maior provedor de ajuda em Gaza, que sofre com uma fome causada por “Israel”.
No entanto, o NYT não tem dificuldade em glorificar a participação dos civis ucranianos (treinados pelo exército) na resistência à ocupação russa. Alguns exemplos:
- ‘Agora Sou um Soldado.’ Mesmo em Vilarejos Intocados, Ucranianos se Preparam para Lutar
- ‘Todo Mundo no Nosso País Precisa Defender’
- Vilarejos Ucranianos, Antes Tranquilos e Pitorescos, Mobilizam-se para a Guerra
- Cidadãos Ucranianos se Preparam para Lutar Contra o Exército Russo
Você pode encontrar mais exemplos da cobertura do NYTs sobre civis ucranianos resistindo à invasão russa aqui.
A publicação usa a ocupação russa para justificar amplamente as ações da resistência ucraniana clandestina, como visto na manchete deste artigo de junho de 2022: “Ataques Guerrilheiros Sinalizam Crescente Resistência à Ocupação Russa”:
“Alimentados pela repressão brutal russa e pelas condições humanitárias cada vez piores, os guerrilheiros ucranianos parecem estar atacando profundamente dentro do território controlado pela Rússia.”
Não é preciso dizer que NYT não concede esse tipo de justificativa contextual à resistência palestina, que luta contra uma ocupação de seis décadas, um estado de apartheid e uma campanha de limpeza étnica de pelo menos 76 anos, apoiada pelo peso total dos países e empresas mais poderosos do mundo.