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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

‘A Hora dos Ruminantes’, José J. Veiga

Resenha Livro - “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga – Editora Três

O realismo fantástico ou mágico foi uma forma com que se qualificou uma série de obras literárias latino-americanas produzidas entre as décadas de 1960 e 1970.

Diante do impacto dos golpes militares que instituíram regimes de exceção em praticamente todos os países da América Latina, criou-se um estilo de narrativa em que o absurdo emerge da realidade cotidiana e banaliza-se na percepção dos personagens.

Os elementos mágicos e fantásticos são concebidos como parte de uma nova “normalidade”, e assim também são percebidas pelos personagens. Há uma convergência entre aquilo que é comum e banal com aquilo que é sobrenatural. A conjuntura política daquele período, marcado por regimes de exceção que se eternizaram por anos a fio, se comunica com essa proposta de criação de uma expressão literária na qual a fantasia e o sobrenatural exsurgem da realidade, para elas próprias tornarem-se um novo estado de normalidade, apenas contestada por alguns espíritos isolados, dotados de alguma rebeldia.

As ditaduras militares que apareceram como um regime de exceção provisório para contornar o risco da revolução impõem um novo estado de normalidade, em que o que era absurdo deixa de ser percebido como tal.

O romance “A Hora dos Ruminantes” (1966) do escritor goiano José J. Veiga é talvez a versão mais bem acabada do realismo fantástico na literatura brasileira.

Escrito dois anos após o golpe de 1964, o romance trata de um pequeno vilarejo fictício chamado Manarairema, onde uma população de simples camponeses e artesãos é surpreendida pelo aparecimento de um povo estrangeiro, que desde o horizonte, num certo dia, surge e constitui um acampamento. Aqueles estranhos despertam num primeiro momento a curiosidade do povo de Manarairema, isolados que sempre estiveram de qualquer novidade vida de fora:

“No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam, chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a cena nova. Uns chamavam outros, mostravam, indagavam, ninguém sabia. Em todas as casas era gente se vestindo às pressas, embaraçando a mão em mangas de paletó, saindo sem tomar café, pisando em cachorros lerdos, cachorros ganindo, gente dando peitada em gente, derrubando chapéu, a algazarra, a correria. Todos deviam ter visto ao mesmo tempo a parte alta do largo, as janelas dos sobrados, os barrancos estavam tomados de gente olhando, apontando, discutindo”.

Os forasteiros não têm nome e não têm rosto. Um ou outro cruza com os habitantes de Manarairema pelas estradas e não cumprimentam, passam-se por ofensivos e grosseiros. Contudo, aquelas pessoas tão estranhas, chamados pelo povo de “homens da tapera”, vão misteriosamente se impondo e ganhando uma preponderância moral sobre o povo do vilarejo.

Num primeiro momento, os homens da tapera contratam os serviços de Germiniano, um preto que aluga carroça de burro para o transporte de mercadorias. Não foi bem uma contratação, mas uma intimação para obrigá-lo a transportar areia, sem que o leitor saiba com clareza quais os mecanismos com que constrangem, compelem e ameaçam o trabalhador a prestar os serviços.

Germiniano num primeiro momento recusa o trabalho com indignação, pela forma com que é abordado e por desconhecer a natureza daqueles homens. Depois de ser convocado a ir pessoalmente ao acampamento, transforma-se completamente, assume estar vivendo um novo estado de coisas, executa as ordens dos homens como se fosse uma sentença inapelável de um juiz, e o seu medo vai se disseminando aos demais cidadãos de Manarairema. Faz um eterno transporte de areias, sem coragem de explicar aos demais o porquê de sua capitulação. Segue um eterno ir e vir, transportando a areia, tal qual o mito de Sisifo da mitologia grega, que conta a história de um homem que foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha para sempre, repetindo o processo quando a pedra caísse.

E assim, sucessivamente, os homens da tapera vão convocando, sem possibilidade de recursos, um ou outro habitante para lhe prestar serviços.

Constituem um novo regime de medo e terror: aqueles que se recusam a comparecer aos chamados são alertados às graves consequências da sua rebeldia. As ameaças não são ditas de forma expressa por aqueles estrangeiros (eles quase não se manifestam na história), mas são repercutidas pelos cidadãos que voltam transtornados do acampamento vizinho. A coação é velada e não se sabe bem quais seriam as consequências da transgressão da nova ordem; há, por outro lado, uma convicção crescente no coração do povo do dever de respeitar e atender todos os chamados dos homens da tapera. Os forasteiros se projetam quase como uma força divina, capaz de aplicar os mais cruéis castigos às ovelhas que se desviassem da trilha por eles traçadas ao rebanho.

A invasão dos homens da tapera é seguida de outros eventos fantásticos.

Há uma segunda invasão de cachorros, que tomam as ruas e casas de Manarairema sem que os habitantes tenham força moral e iniciativa para rechaçá-los. Aceitam-nos entrando nas suas casas e fazendo sujeira, como se fosse uma mera fatalidade da natureza. Segue-se depois uma segunda invasão de bois, esta ainda mais catastrófica, com os animais tomando todo o espaço da cidade, entupindo as ruas de esterco, tornando o ar podre e obrigando os moradores a queimar fumo e casca de laranja para aturar o odor.

O elemento fantástico, na história, emerge gradualmente da realidade banal e comezinha de Manarairema. Ao longo da história, a fantasia mais se avolumando, até resvalar o absurdo. De uma invasão de forasteiros, à invasão de cachorros e por fim à invasão de bois.

Por fim, num certo dia, os bois, os cachorros e os homens da tapera regressam de onde vieram e a pacata cidade retorna à normalidade. O livro termina com a imagem do tempo, que se interrompeu durante o período da fantasia, quando se impôs a ditadura dos homens da tapera, para retornar ao seu trabalho de cronometrar a vida. E assim termina o livro:

“O relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo desregulado. Já estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser”.

Sobre o Autor

José Jacinto Veiga nasceu em 02 de fevereiro de 1915 numa cidade do interior de Goiás chamada “Corumbá de Goiás”. A sua infância, naquele vilarejo, provavelmente serviu de referência para construir Manarairema, que é um lugar fictício onde se passa não só “A Hora dos Ruminantes” (1966) mas também é o cenário do livro “Os Cavalinhos de Platiplanto” (1959).

Iniciou-se na literatura relativamente tarde, aos 45 anos de idade. Formado em Direito pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, acabou abraçando o jornalismo, tendo colaborado na imprensa carioca e na BBC Londres. Faleceu em 1999, alguns anos depois de receber o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, como forma de reconhecimento final do conjunto de sua obra literária.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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