Constituir-se como narrativa linear em nada interfere na qualidade da história em quadrinhos. Isso posto, na maioria das vezes, HQs de terror, erotismo e super-heróis mostram-se lineares; além do mais, autores importantes da HQ compõem narrativas lineares, por exemplo: (1) Guido Crepax, em muitas aventuras da Valentina; (2) Hugo Pratt, em Corto Maltese; (3) Liberatore, em Ranxerox; (4) Hergé, em Tin Tin. Nessas circunstâncias, a linearidade revela-se apenas outra das muitas formas de construir narrativas, com sua estrutura apresentando-se tão codificada quanto as demais; entretanto, a preponderância do uso naturaliza a linearidade, levando a crer em sua adequação ao fluxo dos acontecimentos e aos fatos do mundo e a torná-la, supostamente, mais “verdadeira” que as demais formas de narrar. Consequentemente, uma vez codificada em norma de leitura, tomam-se quaisquer alternativas ao uso da linearidade por experimentalismo narrativo.
Há, porém, outros modos de experimentalismo na semiótica dos quadrinhos, determinando-se a seguir, pelo menos, três deles: (1) a presença de personagens pouco convencionais, causando estranhamento; (2) a utilização de vários estilos de desenhar na mesma HQ; (3) recursos visuais apontando para linguagens distintas da linguagem dos quadrinhos. Examina-se, adiante, cada um deles.
(1) personagens pouco convencionais
Personagens inusitadas colocam em xeque a linearidade, encaminhado estranhamentos capazes de perturbar o fluxo narrativo; seguem quatro exemplos, em ordem crescente de estranhamento: (1.1) em “O plexo holístico”, de Diego Gerlach, número 6 da Cachalote 1000, um bêbado se vê às voltas com super-heróis, lobisomens e animais de rua quando o autor coloca, no mesmo cenário, personagens de universos distintos do imaginário das HQs; (1.2) em “Eu quero ser uma locomotiva”, de Luiz Gê, personagens de diversos mundos imaginários, tais quais soldados nazistas, militares árabes, índios norte-americanos, discos voadores e bandidos do morro, tentam parar uma locomotiva em alta velocidade, realizando-se, novamente, o delírio em torno das personagens; (1.3) em “Errare marcianum est”, também de Luiz Gê, as personagens se mostram ainda mais delirantes, com os monstrengos de Marte se multiplicando; (1.4) nas HQs de Rick Griffin, publicadas na Zap Comics, perdem-se as noções de personagem, com a narrativa se desenvolvendo em formas plásticas difusas e polissêmicas.
(2) presença de diferentes estilos de desenhar
Manter o desenho regular ao longo da HQ reforça a linearidade narrativa, pois desenhos regulares evitam que o leitor desvie a atenção da narrativa para questões propriamente plásticas. Dois ou mais modos de desenhar revela modos distintos de construir a realidade, interferindo, assim, no andamento linear da história; seguem três exemplos, em ordem crescente de multiplicação de estilos, portanto, de complexidade: (2.1) em “Quem matou Papai Noel”, do Luiz Gê, uma das personagens, o Cara de Bola, revela-se caricatura em meio a personagens e lugares desenhados com traços menos estranhos; (2.2) em “Tubarões voadores”, ainda de Luiz Gê, o estranhamento não se deve apenas a uma personagem, pois os tubarões possuem traços quase realistas, enquanto os habitantes da cidade surgem em traços variados, incluindo caricaturas; (2.3) Bill Sienkiewicz combina estilos diferentes ao longo de todo o texto das HQs, valendo-se de colagens, xerox, nanquim, aquarela etc.
(3) encaminhamento de outras linguagens
Em linhas gerais, a linguagem da HQ se mostra linguística e visual, realizada nas duas dimensões do papel e com imagens desenhadas; uma vez formada, tal linguagem pode se combinar com outras, seguindo-se quatro exemplos, dispostos em graus de maior distanciamento das HQs convencionais: (3.1) em “11”, de LTG, o número 9 da Cachalote 1000, sugere-se, em cada página, que os quadrinhos, sempre seis, sejam recortados e montados feito cubos, subvertendo-se a ordem usual de leitura, portanto, a linearidade narrativa; (3.2) em O lobisomem, de Eduardo Belga, agora da coleção Cachalote Franca, a capa e a contracapa se dão a recortar, formando bonecos de papel – com isso, os bonecos interferem na HQ, projetando seu universo além das duas dimensões do papel e da estabilidade dos desdobramentos narrativos, porquanto, nas mãos dos leitores, os bonecos se tornam interativos, inaugurando-se novas histórias –; (3.3) em “Borba Gata”, do Luiz Gê, desenha-se a HQ sobre um corpo de manequim, configurando-se uma HQ em três dimensões, com as duas dimensões da HQ garantindo a leitura linear, que se multiplicada nas muitas formas de percorrer o corpo do manequim; (3.4) “Building stories”, de Chris Ware, compõem-se de vários livros, com formatos distintos, cabendo ao leitor interagir com as narrativas propostas ao escolher como organizará as sequências.