Um dos exercícios intelectuais favoritos daqueles com tendência ao pensamento idealista são conjecturas históricas. E se tivesse sido assim, o que teria acontecido? Para um marxista, materialista, essa questão naturalmente não faz sentido algum. A história acontece como deve acontecer e é feito pelos homens, ainda que não segundo sua vontade. A história é uma ciência e se desenvolve segundo certas leis.
O que me atrai a essas especulações é que normalmente elas são de anacronismo e ignorância ímpares. Vejamos, por exemplo, a questão do momento: a censura que recai sobre os bolsonaristas no Brasil e sobre Trump nos Estados Unidos, teria impedido a chegada dos nazistas ao poder? Quem dera a república de Weimar estivesse equipada com figuras de cabeça iluminada e reflexiva como Alexandre de Moraes, ou de deputados como Orlando Silva, que querem acabar com a liberdade de expressão na internet.
Bom, acontece que ela estava equipada com tais demagogos oportunistas.
A Lei para a Proteção da República foi aprovada por 303 votos contra 102 com apoio unânime do Partido Social-Democrata Alemão (PSDA), dos Social-Democratas Independentes, o Partido Democrático Alemão, o Partido do Centro e uma maioria do Partido Popular Alemão. Opuseram-se ao projeto o Partido Popular Nacional Alemão, o Partido Popular da Baviera, a Liga dos Camponeses da Baviera e o Partido Comunista, explicitando as divergências entre a Segunda Internacional, representada pelos social-democratas, e a Terceira Internacional, fundada por Lênin, que abrigava todos os partidos comunistas. Walter Stoecker, representando o Partido Comunista, criticou o projeto alegando que “sob a influência dos partidos da coalizão, as leis para proteger a república se tornaram leis para proteger os monarquistas, leis para perseguir a classe trabalhadora” (Vor 100 Jahren: Reichstag verabschiedet Gesetz zum Schutz der Republik, Deutscher Bundestag, 2022).
O argumento de Stoecker era baseado tanto em sua experiência com a repressão da Revolução Alemã de 1919, como pelas sucessivas repressões policiais que aconteceriam sob o governo do PSDA, como a da Insurreição de Hamburgo em 1923. Um exemplo mais claro de arbitrariedade foi a repressão violenta da manifestação de Primeiro de Maio em 1929, quando manifestações públicas estavam proibidas em Berlim. Os Comunistas desafiaram a proibição e foram duramente reprimidos pela polícia em episódio que entrou para a história como Maio de Sangue.
Entre o início de 1930 e o final de 1932, uma série de jornais foram proibidos. A suspensão era temporária, mas demonstra a perseguição política que imperava durante a República de Weimar.
“Durante a chancelaria de [Heinrich] Brüning, houve 284 suspensões de jornais, das quais 99 foram impostas pelos nazistas, 77 pelos comunistas e 43 pelos jornais de direita radical. Durante o governo de [Franz] Von Papen (de 14 de junho a 17 de novembro de 1932), houve 95 suspensões, das quais os nazistas incorreram em 20, os comunistas em 39 e os socialistas em 10.” (Oron J. Hale, The Captive Press in the Third Reich, p. 12, 1973)
E não eram apenas os jornais que sofriam sanções. Logo após sua saída da prisão, Hitler ficou alguns anos proibido de falar em público em diversos estados alemães. Vejam o que dizia um poster da época:
“Quem é Adolf Hitler? O homem do povo, para o povo! O soldado alemão da frente que arriscou sua vida em 48 batalhas pela Alemanha!
“O que Adolf Hitler quer? Liberdade e comida para todo trabalhador alemão decente! A forca para os aproveitadores, os comerciantes do mercado negro e os exploradores, independentemente da fé religiosa ou da raça!
“Por que Adolf Hitler não tem permissão para falar? Porque ele é implacável ao desmascarar os governantes da economia alemã, os judeus do banco internacional e seus lacaios, os democratas, marxistas, jesuítas e maçons livres! Porque ele quer libertar os trabalhadores do domínio do grande capital! Trabalhadores alemães! Exijam a suspensão da proibição ilegal de sua fala!” (Nazi Posters: 1920-1933, German Propaganda Archive – Calvin University, poster 6, 1927).
Mesmo o propagandista-mór de Hitler, Joseph Goebbels, foi preso após ter sua imunidade parlamentar removida pela simples publicação de editoriais ofensivos no tabloide nazista. Seria o equivalente moderno ao “discurso de ódio” (Goebbels Arrested; Hitler’s Chief Aide, The New York Times, 27/04/1931).
Não me arrisco aqui a dizer que os nazistas chegaram ao poder graças à censura, mas que a perseguição política lhes deu um ótimo argumento diante de um colapso total do Estado alemão, lhes deu. Basta ver o uso constante das palavras de ordem “Liberdade e pão” ou “Apesar da proibição, não morremos”. Deram a quem não tinha nada para dizer uma das pautas mais queridas da humanidade. Não preciso dizer que era tudo demagogia e que, ao chegarem ao poder, censuraram todos, inclusive seus censores, né?