Em 2020, Luciana Salton, uma das herdeiras da vinícola Salton — na época diretora executiva da empresa — afirmou, em entrevista à Veja, que o sobrenome não garante a posição que ocupa: “Temos um lema entre nós, quase um mantra: sobrenome não garante emprego. Estou aqui, na posição que ocupo, porque quis e me preparei para isso.” Resta saber então, quais pecados os trabalhadores escravizados no terroir da vinícola cometeram para “merecer” um destino tão infernal.
Como já foi amplamente discutido na imprensa brasileira, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) resgatou, na noite quarta-feira (22/02), cerca de 200 trabalhadores baianos em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, Serra gaúcha. A empresa de prestação de serviço “Fênix”, era responsável por fazer as contratações de trabalhadores que, por sua vez, realizaram a colheita de três grandes vinícolas da serra gaúcha: Aurora, Garibaldi e a “meritocrática” Salton.
As investigações estão sendo conduzidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego e revelam o terror no qual os trabalhadores foram submetidos. Tortura física e psicológica, humilhações diárias, alimentação estragada, falta de equipamentos de proteção entre outras monstruosidades realizadas pela burguesia agrária brasileira.
Toda essa operação era mantida por dois pilares: as dívidas do trabalhador para com o empregador, que já eram contraídas na viagem da Bahia para o Rio Grande do Sul, aumentando no decorrer dos meses porque o patrão não pagava o salário prometido e capangas armados que asseguravam a permanência dos trabalhadores no alojamento da empresa. Era essa dupla coação que empurrava os nordestinos para jornadas de trabalho extenuantes, sem o equipamento adequado e sem a capacidade de voltar para suas famílias.
A revolta dos “senhores de engenho”
Em Caxias do Sul, nesta terça-feira (28/02) o vereador Sandro Fantinel , em reação aos acontecimentos, realizou um discurso apaixonado na tribuna da câmara municipal em defesa da burguesia agrária e seus crimes contra os trabalhadores: “com os baianos, que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema”. Ele sugeriu também dar preferência a trabalhadores argentinos, onde “todos os produtores que contratam argentinos, batem palma!”. Além disso, o vereador sugeriu aos produtores e empresários que “não contratem mais aquela gente lá de cima [Nordeste]”. O vereador, além de ser expulso do partido Patriotas, segue investigado pela polícia civil e corre o risco de cassação.
A demagogia da imprensa
Apesar da imensa demagogia da imprensa capitalista, tentando pintar o caso como um ato de xenofobia, ou racismo, a fala do vereador o trai. Veja que o problema dele, assim como o da entidade industrial de Bento Gonçalves, não é necessariamente com a origem, ou a cor do funcionário. Como ele disse, os “argentinos trabalham”, mas o que ele não disse é que os argentinos que trabalham nessas condições, saem de um país mergulhado em crises, onde a população está ainda mais empobrecida que o Brasil. Em matéria anterior do DCO, analisamos brevemente a situação que a Argentina está jogada.
De fato, como observado anteriormente com o bolsa família, a burguesia tende a se ressentir porque o povo brasileiro não mais se submete, com tanta facilidade, à escravidão moderna em troca das migalhas usuais. Como disse em 24 de fevereiro de 2010 o presidente do Sindicato de Habitação do Mercado Imobiliário da Cidade de São Paulo (Secovi), João Crestena: “Precisamos de 200 mil novos empregados no setor. Onde estão estes jovens? Recebendo o Bolsa Família. Precisamos influenciá-los a sair do programa e ir atrás de empregos”
É disso que se trata o panorama da perda de direitos trabalhistas: diminuição do custo de mão de obra. A outra necessidade “do mercado” seria diminuir os valores dos programas de assistência social, para fazer os brasileiros “trabalharem como os argentinos” que em nosso país adentram. Coincidentemente, a imprensa capitalista condena o trabalho análogo a escravidão, ao passo que defende as políticas que precarizam o trabalho.
Voltando à herdeira Luciana Salton, que em sua defesa apaixonada pela meritocracia, aparentemente, esqueceu de afirmar sob quais bases a sua empresa obteve lucros tão altos: “Nossa empresa encerrou 2019 com crescimento de 17,5% no faturamento em relação a 2018. Foram 36,8 milhões de garrafas vendidas no Brasil e fora do país”. Esse verniz ideológico neoliberal, que sustenta a mentira da “meritocracia”, esconde o que há de pior na sociedade brasileira: escravidão, exploração capitalista, tortura e assassinatos.
A questão descrita aqui, que fique claro, não se estrutura por racismo, muito menos xenofobia, que são partes acessórias. Estamos lidando, centralmente, com a brutal exploração do trabalhador.
Infelizmente, com a degeneração da capacidade produtiva brasileira e dos direitos trabalhistas, independentemente do que diz nossa legislação, cenas como estas serão cada dia mais frequentes.