Ainda bem que existe a tal da apropriação cultural. O que seria de nós, seres humanos, sem ela? O que os identitários costumam apontar como sinônimo da exploração e opressão é, na verdade, uma condição essencial para o desenvolvimento da humanidade.
Como é bastante comum nas teorias acadêmicas idealistas, como é o caso do identitarismo, os conceitos têm significados muito confusos. Em geral, o que os identitários querem dizer com a apropriação cultural é que, por exemplo, um branco não poderia usar um elemento da cultura negra, um negro ou um branco não podem vestir-se de índio, um europeu não poderia usar algo da cultura africana, e por aí vai.
É com base nessa ideia, por exemplo, que aparecem aqueles debates histéricos nas redes sociais contra o uso de fantasia no carnaval. Não pode se vestir de índio nem de cigano, por exemplo. Em última instância, como existem também os supostos defensores dos animais, até mesmo fantasiar-se de algum animal seria um pecado. Em última instância, acabou a fantasia, só está permitido ir ao carnaval vestido de si mesmo.
A ideia da apropriação cultural também está relacionada com o tal do “lugar de fala”, em que basicamente só pode opinar sobre determinas coisas aquela pessoa que viveu aquilo. Branco não pode falar sobre negros, negro não pode falar sobre índio, homem não pode falar sobre a mulher, hétero não pode falar sobre LGBT, europeu não fala de africano, este não pode falar dos asiáticos, que não podem falar de americanos. É Claramente uma ideia anticientífica.
Mas voltemos à apropriação cultural. A cultura tal qual conhecemos hoje é o resultado de múltiplas interações entre diferentes sociedades. Até mesmo aquilo que parece uma cultura de um povo específico só é daquele jeito graças a essas interações. Quanto mais interações, mais diversificada, portanto, mais complexa e desenvolvida é uma cultura. Isso não significa que esse intercâmbio cultural não possa ter sido, em alguns casos, o resultado de um processo de explorações e invasões. Mas a denúncia desse processo político não muda o resultado final daquele intercâmbio.
A reconhecida riqueza da cultura brasileira é produto dessa diversidade.
Os gêneros de música popular mais característicos do Brasil são o sertanejo e o samba. O primeiro, é uma síntese da cultura indígena com a portuguesa, embora haja majoritariamente a presença da cultura negra.
A identificação do samba com os negros é inegável e a participação fundamental dos negros na formação do samba também é inegável. No entanto, isso não significa que o samba seja um ritmo exclusivamente negro. O samba é o resultado de uma mistura bastante complexa dos ritmos africanos trazidos pelos escravos e elementos harmônicos e melódicos introduzidos pelos brancos europeus, em particular os das classes baixas, que conviviam com os negros. Há, ainda, o elemento indígena no samba. O samba é uma música negra apenas enquanto o Brasil é um país predominantemente negro, mas não é uma música africana, é um estilo brasileiro, ou seja, formado pelos povos que fundaram a sociedade brasileira. Um intercâmbio entre esses povos.
Um exemplo bastante interessante é o do ska, estilo jamaicano que precedeu o reggae. Embora o ska propriamente não tenha origens tão remotas quanto o samba, fato é que o estilo surgiu em um país onde a população negra é ainda mais concentrada do que no Brasil. A própria formação do ska remete a uma mistura de ritmos caribenhos com elementos norte-americanos. Posteriormente levado pelos imigrantes jamaicanos para a Inglaterra, o ska tornou-se a música favorita entre a juventude operária inglesa nos anos 70 e 80. Foi essa convivência entre jovens da classe operária inglesa (precisamos dizer que são brancos?) e os imigrantes jamaicanos que deu ao ska a importância que ele tem hoje. É inegável que os jovens operários ingleses realizaram “apropriação cultural”, haveria algum demérito nisso? Claro que não.
Essa discussão é importante porque com a aproximação do carnaval seremos obrigados a assistir ao espetáculo grotesco dos identitários contra as manifestações populares. O primeiro caso desse ano foi a censura a uma fantasia da centenária Portela. Como nos anos anteriores, vai aparecer um bandinho histérico de identitários para falar o que se pode ou não fazer no carnaval, como se o carnaval fosse de propriedade dessas pessoas.
O correto é ignorar como se ignora um cachorro de madame que late muito, mas não consegue nem abrir a boca para morder. E é isso o que são os identitários, pessoas de apartamento, as mais velhas são madames pseudo-esquerdistas e as mais novas são patricinhas “hippongas”, ou, para não sermos acusados de machismo, são engomadinhos e mauricinhos no caso dos homens.
O que é mais interessante – e isso foi flagrante no caso do cancelamento da fantasia da Portela – é que esse “militantes” de apartamento e redes sociais trazem uma ideologia reacionária, criada nos escritórios dos países imperialistas europeus e dos EUA, “brancos, eurocêntricos e etnocêntricos, como eles mesmos gostam de falar, para dentro de uma manifestação da cultura popular de uma país pobre, de maioria negra e mestiça. E na mente deles, são eles os grandes lutadores contra a opressão.
O carnaval é, por essência, anti-identitário. O carnaval brasileiro – e toda a cultura em torno dele – é uma festa popular cuja origem é a cultura europeia. Ele é a própria apropriação cultural: os negros se apropriaram da festa cuja origem é europeia, os brancos se apropriaram dos batuques, cuja origem é africana. Eis aí o Brasil!