A empresa de streaming norte-americana Netflix está produzindo um documentário dramático, isto é, um documentário com cenas de ficção sendo usadas entre os depoimentos de especialistas. Até aí, nada de novo sob o sol, nenhum motivo para polêmica, o furor surgiu quando a empresa decidiu escalar uma atriz negra, com um penteado semelhante a um “black power” para representar a rainha egípcia.
Ao contrário do que pode se esperar, a reclamação não veio de setores conservadores no interior dos EUA, ou de extrema-direita, a reclamação veio dos próprios egípcios, que consideram que o que está acontecendo uma tentativa de apagar a “identidade do povo egípcio”. Um advogado egípcio, Mahmoud al-Semary, está até processando a companhia americana por conta da decisão, o advogado se disse ultrajado.
Primeiro de tudo, aos fatos! Era Cleópatra negra, branca, chinesa ou indígena? Existe uma pequena polêmica sobre o assunto. Cleópatra, apesar de ter sido rainha do Egito, não era, em princípio, da etnia que se espera de um egípcio médio, feições árabes ou até negras. A rainha era herdeira de uma dinastia de origem grega, a dinastia ptolemaica, cujo fundador, Ptolemeu era um general de Alexandre, O Grande, da macedônia. Seu pai era branco, com traços helênicos, ou seja, da região da Grécia Antiga. O grande problema está na identidade da mãe, não há certeza sobre quem ela seria. A única opção seria a esposa de Ptolemeu XII, pai de Cleópatra, que também se chamava Cleópatra.
A dúvida se dá, pois a documentação é escassa e a data de morte de Cleópatra V, como teria sido chamada a mãe, e a data de nascimento Cleópatra VII, a famosa Cleópatra que teria tido um filho com Júlio César e motivo deste artigo, são muito próximos, dando dúvidas.
Há um relativo consenso entre historiadores de que, fosse ela uma filha bastarda, isso teria sido usado contra ela pelos seus inimigos romanos e nenhuma acusação do tipo jamais foi feita. Portanto, é razoavelmente seguro estabelecer que Cleópatra V é a mãe de Cleópatra VII e que provavelmente ambos os pais fossem de origem grega.
Os americanos, europeus e o problema da cor de pele
Em um artigo de Tina Gharavi, iraniana-americana, diretora do documentário, ela diz que seria um grande “ato político” escalar uma mulher negra, Adele James, pois Hollywood teria sempre buscando embranquecer a rainha egípcia. Vemos aqui um problema que aparece muito nas discussões raciais vindas dos EUA e países similares, para eles o problema racial de lugares como o Oriente Médio, a América Latina e outras regiões do Globo é absurdamente complexo para eles entenderem. Nos EUA existem brancos e negros, não há uma palavra para o “mulato” brasileiro, ou tipo de etnia comum. Os americanos se espantaram quando o jogador Neymar disse que “eu não sou preto” e acusaram o jogador de ser racista, quando, na verdade, o racismo era deles. No Brasil, Neymar, pode muito bem não se considerar negro, ele pode, com todo o direito, se achar um mulato, ou até branco, tamanha flexibilidade dos padrões raciais brasileiros. Os árabes podem muito bem não se achar negros, afinal há distinções entre eles e os negros africanos. O ato político da diretora iraniana-americana não levou em conta a realidade histórica ou até mesmo a determinação do povo egípcio sobre essa figura histórica, levou em contar apenas os seus próprios preconceitos e necessidade de fazer política, ou demagogia política, com a história alheia.
A reação egípcia
Diferentemente de uma diretora que simplesmente chegou na discussão agora, quando lhe foi proposto o trabalho, a rainha Cleópatra existia na cultura e na política egípcia há dois mil anos, ela é considerada uma parte fundamental da identidade nacional deste país e tem uma importância grande para os que lá vivem. A diretora foi rápida em decidir que a reação egípcia, de ultraje, era apenas uma defesa da “branquitude”, mas isso é apenas e tão somente racismo da diretora. O Egito é um povo que valoriza a influência grega que eles tiveram e veem a rainha Cleópatra como parte disso, inclusive, pois a história dá razão a esse pensamento, ela teria parentes de origem grega, que, em geral, casavam dentro da família grega. Ela poderia não ser branca como uma folha de papel, mas poderia também ser, mas, o mais provável é que ela não teria traços negros. A decisão de impor isso aos egípcios e depois reclamar que eles não gostaram de ver a história deles contada através dos preconceitos de americanos, e taxar tudo isso como preconceito, é apenas e tão somente um racismo identitário. Ignora-se totalmente a realidade e até mesmo a opinião dos que tem algum direito de decidir, faz-se o que os dogmas políticos e ideológicos mandam. O resultado é simples, um filme descolado da cultura de todos e da própria realidade, só que com o nome de “documentário”.