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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

ABL identitária

Um índio na Academia Brasileira de Letras

Enquanto uma esquerda intelectualizada se distrai corrigindo as obras do passado, a direita avança no seu movimento de opressão

A imprensa burguesa, tão ciosa de seu papel de “formador de opinião”, saudou com efusão o ingresso do “primeiro indígena” na Academia Brasileira de Letras (ABL), tomando o cuidado de tratar com comedimento o arranca-rabo entre Munduruku e Krenak às vésperas da eleição. Não fossem ambos os personagens candidatos a representantes do mesmo segmento identitário, ainda que pertencentes a etnias diferentes, a querela teria rendido manchetes menos condescendentes.

A Folha de São Paulo, por exemplo, minimizou a troca de flechadas entre o índio da Globo e o índio do PSDB – afinal, irmanados na mesma tribo –, deixando recaírem as críticas veladas sobre a ABL. A centenária instituição, sabidamente conservadora, estaria reerguendo-se da própria irrelevância graças à recente preocupação em incluir um indígena no salão de chá ou, por outra, estaria sendo indiretamente beneficiada pela briga entre os candidatos, que, ao fim e ao cabo, lhe renderia publicidade extra.

Como o leitor já deve saber, Daniel Munduruku acusou Ailton Krenak de ser um “traidor”. Munduruku, autor de 64 títulos de literatura infantojuvenil, que juntos atingiram a nada modesta cifra de 6 milhões de exemplares vendidos (inclusive nos Estados Unidos, no Canadá, na Áustria, na Coreia do Sul e no México), já havia manifestado interesse por uma vaga na ABL e chegou a ser bem votado na eleição anterior, na qual foi eleito um médico. Enquanto isso, Krenak desprezava publicamente a instituição. Segundo Munduruku, os dois haviam combinado de não se candidatarem para a mesma vaga. Krenak, no entanto, foi o primeiro a se inscrever logo que foi noticiada a vacância da cadeira nº 5, com a morte do historiador José Murilo de Carvalho. Diante da cobrança de Munduruku, negou que houvesse feito qualquer tipo de acordo e, como se sabe, foi eleito. Munduruku continua afirmando, porém, que teve o tapete puxado e que a eleição foi um “jogo de cartas marcadas“.

Krenak, que, segundo o G1, não tem o hábito de escrever, é autor de alguns livros, que sua editora nos informa serem transcrições de entrevistas e palestras. O autor da reportagem nos explica que “a narrativa de Ailton Krenak segue a tradição indígena da oralidade, em que o conhecimento é transmitido utilizando a voz”. Tudo certo.

Como até o mobiliário de época da ABL já sabia, um dos dois indígenas ficaria com a vaga, ainda que houvesse a possibilidade de uma zebra que concedesse à historiadora Mary del Priori – afinal uma mulher feminista – a “imortalidade”. Não foi desta vez. Entre os dois, a Academia preferiu Ailton Krenak, já membro da Academia Mineira de Letras, que foi assessor de Aécio Neves nos seus dois mandatos à frente do governo de Minas Gerais (de 2003 a 2010).

Nessa época, Lula, que era o presidente da República, propôs indenizar proprietários rurais, deles adquirindo terras que eram objeto de conflito com povos indígenas.  Krenak, então, manifestou-se: “Se eu for pensar no hoje, em 2010, o Brasil está folgado de grana? Então que resolva com grana. O caixa está folgado? Então não tem que deixar as pessoas morrerem”, acrescentando que a promessa era “um engodo”. Pode não ser a melhor solução, mas teria sido interessante saber se, num eventual governo Aécio, os latifundiários seriam expropriados sem qualquer tipo de indenização. Difícil imaginar, mas, segundo ele, o Estado deveria evitar a morte dos indígenas se o caixa estivesse folgado.

Daniel Munduruku, por sua vez, em sua atuação na novela da Globo, encarna um certo pajé Jurucê, cujas terras se limitam com as de um latifúndio de sojicultura em Mato Grosso do Sul, de propriedade do vilão da trama. O fazendeiro, que, aos poucos, vai aprendendo com as novas gerações a não invadir terras alheias nem mandar matar seus inimigos, é capaz de tudo, mas nunca lhe passou pela cabeça incomodar o santuário indígena. Conta-se até que seu filho, na infância, brincava com as crianças da aldeia.

A novela idealiza completamente a região de Mato Grosso do Sul, onde há uma verdadeira guerra dos latifundiários contra os indígenas. Na peça de ficção da Rede Globo, o pajé é um líder espiritual, que, mediante rituais ancestrais, oferece proteção às almas e, de quebra, prevê o futuro. Chegou a receber em sua tenda a filha do fazendeiro vilão, personagem que é viciada em medicamentos de tarja preta. Depois do ritual, tomou o cuidado de recomendar à moça que continue tomando a medicação sob orientação médica e que faça terapia. O lugar do índio e de seu saber ancestral fica, assim, bem delimitado.

Krenak, não nos esqueçamos, também teve sua incursão no mundo das artes cênicas, quando foi convidado a dar uma assessoria à montagem da ópera O Guarani, de Carlos Gomes. Na ocasião, a intervenção na obra de um dos maiores músicos brasileiros justificava-se, à luz do identitarismo decolonial, pelo fato de nela o índio aparecer idealizado. O texto, baseado no livro do romântico José de Alencar, enaltece as qualidades do índio, visto como herói, e faz o elogio da miscigenação, verdadeiro tabu entre os identitários, que consideram toda mistura de raças decorrente de sucessivos estupros. O resultado da assessoria estética de Krenak foi a inserção de indígenas no palco talvez para “desconstruir” a idealização de Alencar.

Em suma, José de Alencar, um escritor romântico, tem de ser “corrigido” pelos identitários, enquanto a atual trama da novela da Globo omite descaradamente a situação de conflito em Mato Grosso do Sul, idealizando a relação que hoje existe entre os latifundiários e os povos que lutam pelo próprio território. Assim, enquanto uma esquerda intelectualizada se distrai corrigindo as obras do passado, a direita avança no seu movimento de opressão. Krenak e Munduruku, afinal, estão juntos. A diferença é que, pelo menos por enquanto, só o primeiro vai vestir o fardão costurado com fios de ouro e receber o módico cachê de R$ 10 mil da ABL.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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