Em artigo intitulado “STF é a última trincheira da democracia”, o blogueiro Eduardo Guimarães procura defender a posição adotada pela maioria dos parlamentares petistas ao se colocar contra a PEC 8/2021, que se propõe a restringir a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu texto, Guimarães não só defende a posição dos parlamentares, como critica o único senador petista que apoiou a PEC, Jaques Wagner, e ainda indica que a proposta de emenda constitucional seria parte de um plano geral dos bolsonaristas.
As premissas que levam Guimarães a essas conclusões são um desastre. Diz ele: “os observadores mais atentos da tragicomédia nacional jamais nutriram ilusões sobre a possibilidade (remota) de este país relaxar e caminhar rumo ao desenvolvimento após derrotar a maior ameaça à democracia desde os idos de 1964”. E quem seria essa “maior ameaça”? Jair Bolsonaro, o ex-presidente da República que, mesmo com um eleitorado de 58 milhões de brasileiros e com apoio de setores das forças armadas e da polícia, foi incapaz de dar um golpe de Estado no País.
Eduardo Guimarães comunga de uma tese bastante difundida no interior da esquerda nacional, que é a de que o bolsonarismo seria um fenômeno completamente atípico, uma espécie de “monstruosidade” superior a qualquer outra coisa na política brasileira. Se fosse fato que o bolsonarismo fosse a pior coisa já vista na política nacional desde 1964, teríamos de chegar à conclusão de que quem derrubou Dilma Rousseff, quem prendeu o então ex-presidente Lula e quem colocou o Rio de Janeiro sob intervenção federal foi o bolsonarismo. Mas não seria verdade: os maiores ataques desferidos contra a população brasileira nos últimos anos vieram do PSDB, do MDB e dos principais representantes do grande capital.
O que Bolsonaro fez contra a população, o fez com apoio dos grandes capitalistas. A privatização da Eletrobrás, que foi um dos grandes crimes de seu governo, aconteceu com o apoio integral da direita “civilizada”. No final das contas, a concepção do bolsonarismo como “grande ameaça”, superior aos bancos, à FIESP, aos latifundiários e ao PSDB, serve apenas para estabelecer um clima de histeria para que a esquerda defenda qualquer um que não seja um representante direto do bolsonarismo.
E é justamente isso que faz Guimarães. Por causa de contradições superficiais com a extrema-direita, o STF é apontado por Guimarães como “o STF é o guardião e o intérprete maior da Constituição Federal”. A concepção de Guimarães chega ao ponto de anunciar no título de seu artigo que o “STF é a última trincheira da democracia”.
Nada poderia estar mais equivocado. O STF é, por sua própria composição, o inverso de qualquer coisa que seja considerada uma “democracia”. O Supremo Tribunal Federal é uma corte composta por onze ministros com mandato vitalício, que não foram eleitos por ninguém. Trata-se, portanto, de um poder que não é eleito. E cuja atuação, longe de “guardar a Constituição”, tem sido a de criar leis e de passar por cima dos Poderes eleitos. Tanto é assim que a PEC 8/2021 não é um “ataque” ao STF, mas sim uma medida defensiva, uma tentativa de impedir que o STF possa interferir em decisões tomadas pelo Legislativo e pelo Executivo.
A proposta da PEC, afinal, não é desautorizar as medidas tomadas pelo STF – o que seria democrático, uma vez que seria a tutela de poderes eleitos sobre uma instituição não eleita -, mas sim a de impedir que a Corte possa desautorizar as medidas tomadas pelos outros Poderes.
Não apenas Guimarães apresenta a PEC 8/2021 como um ataque ao STF, como ele condena em si a ideia de o Congresso procurar limitar os poderes do STF. O blogueiro, na verdade, apresenta tal política como uma espécie de “projeto bolsonarista”:
“O ex-presidente genocida e seus asseclas, muitos dos quais portadores de mandatos legislativos nas duas Casas do Congresso, e que também estão sendo investigados e/ou processados pelo Supremo, sabem que acabarão vendo o sol nascer quadrado a menos que derrubem Lula e mandem ‘um cabo e um soldado fecharem’ o Tribunal. (…) Eles precisam parar o STF e reformular 80% dele. E tentarão fazê-lo pela via legislativa. Após as retiradas de poder do Tribunal, virão os processos de impeachment contra os ministros. Em seguida, o bolsonarismo, tão forte no Congresso, tentará eleger o sucessor de Arthur Lira para instalar um processo de impeachment de Lula, à exemplo do que fizeram com Dilma”.
Se os bolsonaristas têm interesse em atacar o STF por interesses próprios – isto é, evitar serem presos -, isso não deveria ter importância alguma para a esquerda. Se a esquerda tiver como programa se opor a tudo o que os bolsonaristas supostamente defendem, ela está se anulando como força política: é permitir-se ser dirigida politicamente pela Rede Globo, pelo STF ou por qualquer um que se diga “antibolsonarista”.
A “defesa” de conveniência de medidas contra o STF por parte da direita não pode ser confundida com um programa sério para o Poder Judiciário. É preciso não apenas defender restrições contra o STF, mas a dissolução dessa Corte que atua de maneira completamente inconstitucional.