Quase 60 dias após a ministra Rosa Weber se aposentar do Supremo Tribunal Federal (STF), tornando sua cadeira vacante, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou o seu sucessor. Por meio de sua conta no X (antigo Twitter), Lula confirmou que Flávio Dino, até então ministro da Justiça de seu governo, será o indicado à vaga deixada por Weber. Lula ainda aproveitou a oportunidade para anunciar Paulo Gustavo Gonet Branco como seu indicado para a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Ambas as indicações precisam ainda serem aprovadas pelo Senado para que sejam efetivadas. Os indicados irão passar por uma sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que também vota as indicações. Os nomes têm que ser aprovados, ainda, pelo plenário do Senado com pelo menos metade dos votos.
O pior ministro
Uma pesquisa feita pelo instituto Atlas durante os dias 20 e 25 de setembro revelou que a pasta mais impopular do governo Lula seria a de Segurança Pública, que está subordinada ao ministro da Justiça Flávio Dino. Em onze meses de gestão, Dino se tornou a figura do governo Lula mais criticada na internet, refletindo o choque entre as expectativas que o conjunto da população tem de um governo popular com a política tipicamente direitista de um ex-juiz do PSB.
A repercussão negativa de Flávio Dino já começou antes mesmo de Lula tomar posse. No dia 21 de dezembro, quando já havia sido anunciado como futuro ministro, Flávio Dino apresentou, em entrevista coletiva, o nome do coronel da Polícia Militar de São Paulo Nivaldo Cesar Restivo para comandar as políticas penais do Ministério de Justiça de São Paulo. Cesar Restivo era ninguém menos que o comandante da operação que resultou no Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 detentos foram executados, segundo os números oficiais. Dias antes, Dino já havia anunciado Edmar Camata, um apoiador da Operação Lava Jato, como o próximo diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, desistindo, logo em seguida, após as críticas que recebeu.
Nos primeiros dez dias de sua gestão oficial, Flávio Dino se tornou um dos responsáveis pela maior crise que o governo Lula já sofreu até o momento. No dia 8 de janeiro, alguns milhares de manifestantes invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, com a total anuência da Polícia Militar, do Exército, do Gabinete de Segurança Institucional e de todo o restante do aparato de repressão do Estado. O governo sofreu uma humilhação internacional, foi desmoralizado aos olhos de todos. E Flávio Dino, que já era ministro da Justiça nessa época, não agiu a tempo simplesmente porque confiou nas informações que lhe foram passadas.
Não tardou muito e Flávio Dino voltou a se envolver em um novo vexame do governo. O ministro foi um dos principais garotos-propaganda do Projeto de Lei das “Fake News”, um projeto de lei que propõe uma censura brutal do que é dito na internet. O projeto era tão direitista que acabou sendo bastante criticado por setores que apoiam o governo, como os chamados “blogueiros progressistas”. Joaquim de Carvalho, um deles, chegou a declarar que “esses deputados nunca mais merecerão os votos dos progressistas”, referindo-se aos deputados que votassem a favor do PL. “Este projeto é um grande retrocesso”, disse ele.
Em julho, no sétimo mês de sua gestão, Dino voltou a protagonizar outro episódio lamentável. O então ministro da Justiça anunciou um pacote de medidas repressivas que, entre outras coisas, consolidava a pena máxima de 40 anos – “inovação” feita pelo ministro da Justiça do governo Bolsonaro Sergio Moro, hoje senador pelo União Brasil.
O caso Zanin
O anúncio oficial de Lula, que foi precedido por artigos na Folha de S.Paulo e no Brasil 247 que anteciparam a informação na manhã do mesmo dia, pôs fim a um longo período de especulações. Pouco após a posse de Lula, em janeiro de 2023, a discussão sobre os futuros indicados ao Supremo Tribunal Federal passaram a constar com regularidade na imprensa nacional, uma vez que já era sabido que, em função da idade avançada, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber iriam encerrar suas respectivas carreiras como ministros da Corte.
O primeiro ministro indicado por Lula em seu novo mandato foi Cristiano Zanin, há cinco meses. Sua indicação foi precedida por uma intensa campanha da direita contra Zanin, que o acusava de ser um “amigo do Lula”. Ao tomar posse, o mesmo Zanin passou a ser alvo de ataques de setores da esquerda pequeno-burguesa, em especial dos identitários, que o criticavam por ser “conservador”. A crise em torno da primeira indicação de Lula revelou que a composição do STF era um problema político de primeiro plano.
Em essência, o problema não tem a ver com a “ausência de republicanismo” ou com o “conservadorismo” de Zanin. A primeira indicação de Lula foi mal-recebida pela burguesia e pelos elementos pseudo-esquerdistas ligados a ela simplesmente porque o ex-advogado de Lula não se enquadrava nos planos da classe dominante para a mais alta Corte do País.
O grande problema da indicação de Zanin ficaria evidente em uma declaração do comediante Gregório Duvivier, apresentador da HBO ligado ao PSOL. Para ele, a única vantagem da indicação do ex-advogado de Lula seria o fato de ele ser um opositor da Operação Lava Jato. No entanto, esse fato, para Duvivier, seria “o QR Code de um cardápio” – isto é, algo sem importância alguma.
Nada disso. A posição de Zanin em relação à Lava Jato é justamente o maior ponto de atrito entre ele e o conjunto da burguesia. Tanto é assim que a principal figura apoiada por Duvivier para assumir a vaga de Rosa Weber havia trabalhado no gabinete de Luís Roberto Barroso em 2015 – isto é, trata-se de uma pessoa intimamente ligada aos processos da operação responsável pela derrubada de Dilma Rousseff e pela prisão de Lula.
O debate sobre ser ou não um apoiador da Lava Jato é, por sua vez, apenas a superfície de um debate ainda mais importante. A oposição de Zanin à Lava Jato é uma indicação de que o ministro não está disposto a atuar em conformidade com as grandes conspirações nas quais o STF esteve envolvido no último período. Para a burguesia, alguém se apresente como um ministro “técnico”, que tome suas decisões com base na análise puramente jurídica e processual, é inadmissível. Para a burguesia, o STF deve ser um teatro para a mais rasteira politicagem.
O STF, ao contrário do Congresso Nacional e do Poder Executivo, é um poder não eleito. E, como tal, é muito mais vulnerável às pressões do grande capital. E é justamente esse papel que exerce no regime político brasileiro: o STF é o instrumento mais coeso do imperialismo, o mais determinado e, justamente por isso, o mais importante pilar para um golpe de Estado. No Congresso Nacional, é preciso lidar com mais de 600 parlamentares e mais de duas dezenas de partidos políticos. No STF, tudo se resume a onze ministros.
Um único ministro, como Zanin, não é capaz de impedir que o STF seja utilizado para fins escusos. No entanto, sua atuação relativamente independente despertou um incômodo por quebrar o “espírito de corte” do Supremo, o que poderia levar a crises políticas futuras.
Messias x Dino
Apesar de toda a pressão para que indicasse uma “mulher negra” ao STF, Lula deixou claro esse não seria o seu critério. “Já tenho várias pessoas na mira”, disse ele em entrevista à CNN. “Não precisa perguntar essa questão de gênero ou cor, eu já passei por tudo isso. No momento certo, vocês vão saber quem eu pretendo indicar”.
Passada essa campanha, começaram a surgir na imprensa boatos de que os dois principais candidatos à próxima vaga no STF seriam o ministro da Justiça, Flávio Dino, e o advogado-geral da União, Jorge Messias.
No artigo “O fator Alexandre de Moraes na disputa pela preferência de Lula para o Supremo”, publicado pelo jornal O Globo, a articulista Malu Gaspar afirmara que “um grupo de lideranças petistas que tem trabalhado bastante para influenciar as próximas indicações de Lula para o Supremo fechou questão na semana passada em apoio à candidatura do ministro Jorge Messias, da Advocacia-Geral da União”. Esse grupo seria formado por figuras como os deputados Rui Falcão (SP), Zeca Dirceu (PR), José Guimarães (CE) e o senador Humberto Costa (PE), que acreditavam que “a maior missão do integrante do STF a ser nomeado por Lula deveria ser trabalhar para ‘frear’ o ministro Alexandre de Moraes”. Segundo o mesmo artigo, “o grupo petista considerava que Alexandre Moraes estaria “poderoso demais” e que, “Moraes nunca foi próximo do PT e não hesitaria em aplicar ao lulismo a mesma mão pesada que tem adotado contra os bolsonaristas”.
No mesmo período, a articulista Marcela Rahal, da revista Veja, em texto intitulado “Moraes e Gilmar defendem Dino pra evitar Messias no STF”, apresentou uma tese semelhante à de Malu Gaspar, acrescentando que Jorge Messias seria “um nome unânime entre a cúpula do PT para o STF”. A jornalista ainda afirmou que o favoritismo de Messias fez com que “dois nomes próximos ao presidente Lula no STF, ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, sugerissem o nome do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. Seria mais com intuito de tentar evitar Messias do que, de fato, uma escolha pessoal de ambos”.
Desde então, nem Alexandre de Moraes, nem Gilmar Mendes, nem os dirigentes petistas comentaram tais boatos. No entanto, comentários de que Moraes e Mendes estariam por trás da “candidatura” de Dino se tornaram cada vez mais comuns.
Quando Dino foi oficialmente indicado por Lula, choveram comentários na imprensa capitalista destacando o apoio de Mendes e Moraes ao ministro da Justiça:
“De acordo com esse amigo, o presidente da República sabe que pode enfrentar dificuldades no Congresso, mas preferiu bancar Dino, que sempre foi seu candidato, e ter os ministros como aliados, do que tentar alguma indicação que não agradasse Gilmar e Moraes” (Combo Gonet-Dino é vitória do Supremo, especialmente de Gilmar e Alexandre de Moraes. O Globo. Malu Gaspar. 27/11/2023)
“Tanto Dino quanto Gonet têm apoio de ministros do STF como Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes” (Cotado para a PGR, Gonet se reúne com Lula no Alvorada. O Antagonista. 27/11/2023).
A indicação de Dino teve, portanto, o sentido exatamente oposto que a indicação de Cristiano Zanin. Trata-se de uma indicação que vai ao encontro dos interesses daqueles que vêm fazendo do STF um instrumento do imperialismo no regime político.
A PEC 8/2021
O aceno de Lula a Dino e Moraes vem logo após mais um episódio da crise entre o Congresso Nacional e o STF. No dia 22 de novembro, foi votada no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/2021, que restringe poderes do Supremo Tribunal Federal, especialmente no que diz respeito às decisões monocráticas acerca de medidas tomadas pelo Legislativo e pelo Executivo. O placar foi bastante apertado: por apenas três votos, a PEC foi aprovada.
O que chamou a atenção particularmente nessa votação foi que a maioria dos senadores petistas votaram contra a PEC – a única exceção foi Jaques Wagner, tido como uma figura próxima a Lula. A unidade entre os parlamentares petistas para barrar a PEC era tamanha que o deputado federal Lindbergh Farias (PT) criticou publicamente Jaques Wagner:
“Chancelar essa manobra oportunista do Pacheco e Alcolumbre que querem fazer média com bolsonaristas é um erro”, disse o vice-líder do governo”.
Segundo o articulista Luís Costa Pinto, do Brasil 247, “Jorge Messias, que chegou a estar com a indicação encaminhada demais na cabeça do presidente Lula, nos últimos dias, em razão do embate com o Supremo, foi atropelado pelos fatos. E o fato central é: a ligação do Messias com o Jaques Wagner, em razão do Jaques Wagner ter personificado essa disputa entre instituições entre Supremo e Senado”.
O peso da crise institucional na escolha de Flávio Dino não é mera especulação. No dia seguinte à aprovação da PEC 8/2021, Lula se reuniu com três ministros do STF em um jantar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para tratar da questão. Na reunião, estavam Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.
O discurso de Gilmar Mendes logo após a aprovação da PEC 8/2021 deixa bem claro o conteúdo dessa crise:
“Por fim, senhor Presidente, é preciso deixar claro à Nação Brasileira: este Supremo Tribunal Federal não se curvou à ditadura militar nas quase três décadas de escuridão que mancham a história nacional; este Tribunal, num passado recentíssimo, ainda presente entre nós por força da memória dos mais de setecentos mil mortos na pandemia da COVID, não sucumbiu ao populismo iliberal responsável pelo trágico 8 de janeiro – o dia da Infâmia, conforme a sempre lúcida visão da Min. Rosa Weber; Esta mesma Corte, senhor Presidente, não haverá de submeter-se ao tacão autoritário – venha de onde ele vier, ainda que escamoteado pela representação de maiorias eventuais”.
Em resumo: “este Supremo Tribunal Federal”, como diz Gilmar Mendes, está praticamente chamando uma rebelião contra os poderes eleitos.
A tentativa de Lula de “apaziguar” os ânimos, portanto, é nada mais que uma capitulação para a truculência do STF, que quer se manter como um poder acima de todos.
Uma cobertura de esquerda para um novo golpe de Estado
Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes são a ala mais reacionária e nociva do Supremo Tribunal Federal. Eles são, no final das contas, a ala que representa de maneira mais bem acabada os interesses do imperialismo na Corte.
Alexandre de Moraes vem, desde 2021, se mostrando como o “Xandão do STF”, o homem que, sob a discurso demagógico da “defesa da democracia”, vem rasgando todos os direitos democráticos da população brasileira. Foi ele o responsável pela prisão de mais de 1,3 mil pessoas após a manifestação de 8 de janeiro, baseando-se em firulas jurídicas como o “crime multitudinário”.
Gilmar Mendes, por sua vez, embora tenha uma atuação mais dissimulada, é um elemento ainda mais importante que Moraes. Hoje o decano do STF – isto é, o ministro mais velho -, Mendes esteve envolvido em todas as grandes conspirações da Corte.
Para sobreviver no regime durante tanto tempo, Gilmar Mendes nunca se absteve de mudar de posição. É por isso, por exemplo, que se tornou um “crítico” da Operação Lava Jato, bem como foi um “crítico” de Joaquim Barbosa durante o julgamento do mensalão. Tudo não passou, no entanto, de demagogia: Gilmar Mendes foi cúmplice de cada passo dado pelo STF na transformação do regime em uma ditadura.
A indicação de Dino é ainda mais preocupante porque, para que a burguesia dê um novo golpe contra a esquerda – e há motivo de sobras para que ela queira isso -, um ministro como Flávio Dino é o “candidato ideal”. Afinal, Moraes, como a coluna de Malu Gaspar revelou, já desperta muita desconfiança na esquerda. Gilmar Mendes, por sua vez, não costuma aparecer de frente nas conspirações. A melhor aposta para alguém futuramente levar adiante um processo golpista no STF é alguém como Joaquim Barbosa – um negro, que se dizia eleitor do PT e indicado pelo próprio Lula, Esse alguém, hoje, é Flávio Dino.
A indicação do ministro da Justiça, neste sentido, é a pior escolha não apenas pela figura de Flávio Dino, mas sim por causa do que ele oferece aos interesses futuros dos capitalistas.