O Carnaval é a época da folia. É uma das festas mais populares no mundo. No Brasil, particularmente, a festividade tornou-se, não apenas um patrimônio cultural, como também parte importante da identidade brasileira. Na intenção de fazer tábula rasa da cultura nacional, os indentitários querem impôr seu moralismo também à festa mais popular do país, destruindo-na na prática.
Durante o Carnaval, a imprensa burguesa, principal promotora das ideias identitárias, publicou diversas matérias criticando o uso de algumas fantasias. Entre elas, algumas das mais tradicionais dos carnavais: índio, ‘nega’ maluca, homens fantasiados de mulheres, etc. O argumento é que tais fantasias reforçariam os esteriótipos contra setores oprimidos — ou “marginalizados”, como costuma-se dizer — da sociedade.
A pressão moral do identitarismo é tanta que até a Portela, uma das escolas de samba mais tradicionais do Brasil e um dos baluartes do carnaval brasileiro moderno, foi censurada por uma suposta fantasia racista. Sem entrar no centro da questão que já foi debatida neste Diário (Acabar com a praga identitária antes que ela acabe com o carnaval, Henrique Áreas, Diário Causa Operária, 27/1/23), a Portela preparou uma fantasia de Macunaíma e foi atacada. A fantasia supostamente seria racista por representar o personagem… exatamente como ele é descrito no livro homônimo de Mário de Andrade, um dos mais importantes da literatura nacional.
Para os identitários, o Carnaval, na verdade, deveria parar de existir. Pois a festividade é justamente sobre a subversão da moralidade dominante. Isso não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.
As origens do Carnaval
Algumas teorias apontam que o Carnaval tem suas origens em celebrações pagãs antigas que remontam à Antiguidade. No entanto, o carnaval atual descende diretamente da Idade Média. A Igreja Católica, grande força dominante no período, mas já decadente no seu poder político, acabou abraçando as festas populares e organizando uma época de festa e indulgência antes do início da Quaresma.
A Quaresma é um período em que os fiéis são encorajados a fazerem penitência, abstinência e jejum, como forma de se aproximarem de Deus e se purificarem espiritualmente. O Carnaval tinha, portanto, o objetivo de organizar a subversão popular em relação à moralidade rígida e reacionária da Igreja. Era o momento em que tudo era permitido antes da Quaresma. Era a festa da carne, dos pecadores… No entanto, como se vê, nem mesmo a Igreja Católica censurou as aspirações populares neste período. Ao contrário, dominou tudo por séculos, permitindo que os fiéis saíssem das normas celestiais. O Estado permitia que se fizesse algazarra justamente para a situação não sair do controle.
Os identitários, neste sentido, assumem um papel de censores morais pior do que a Igreja Católica. Estes querem censurar as manifestações genuínas do povo brasileiro, que vai às ruas gozar de determinados aspectos da sociedade.
O Carnaval no Brasil
No Brasil, particularmente, o Carnaval tornou-se um fenômeno das massas populares a partir do final do Século XIX e adquiriu um caráter importante na formação da identidade nacional. No Rio de Janeiro, então capital do país, ocorreu um profundo processo cultural que transformou a festa numa tradição massiva das classes populares. Não por acaso, o Carnaval do Rio é considerado o maior do mundo.
No início, ainda no Século XIX, o Carnaval brasileiro se assemelhava aos carnavais da Itália, Portugal, França e Espanha. No Rio, sociedades carnavalescas como Tenentes do Diabo e o Rancho dos Democráticos iam às ruas tocando valsas, modinhas e outras músicas da época.
A festa logo assumiu um caráter extremamente popular e ranchos oriundos de classes mais baixas começaram a surgir, causando alvoroço nas cidades da capital — motivo pelo qual começaram a ser reprimidas pelo Estado. Estes blocos populares entravam em confronto para roubar os estandartes. Os foliões jogavam balões de fezes, sêmen e várias outras nojeiras, fantasiavam-se de demônios e outras coisas “imorais”, e assim por diante.
Antes do Carnaval popular ser aceito pelas autoridades do Estado, muitos confrontos ocorreram entre a população e a polícia. Era comum nos carnavais do início do Século XX, marchinhas em gozação a autoridades da época. Pessoas importantes do início da República brasileira foram gozadas pelos foliões. Entre eles, por exemplo, Oswaldo Cruz, um importante médico e sanitarista brasileiro cuja contribuição para a saúde pública brasileira é inestimável, que foi alvo da marcha “Rato, rato, rato” de 1904.
Aliás, a música “Pelo Telefone” (Donga), de 1917, considerado o primeiro samba, demonstra isso. Uma das mais conhecidas versões da música, modificada para o carnaval de 1917, buscava ironizar a política do chefe da polícia Aurelino Leal com as casas de jogo e apostas. Dizia a versão:
O chefe da polícia
Pelo telefone
Mandou me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
para se jogar
Ai, ai, ai
O chefe gosta da roleta
Ai, ai, ai
Ó maninha
Ai, ai, ai
Ninguém mais fica forreta
Ó maninha
Chefe Aurelino
Sinhô, sinhô
É bom menino
Sinhô, sinhô
Faz o convite
Sinhô, sinhô
Pra se jogar
Sinhô, sinhô
De todo jeito
Sinhô, sinhô
O bacará
Sinhô, sinhô…
Enquanto as autoridades eram gozadas, o povo saía às ruas vestidos de tribais, índios, demônios, entre outras coisas “imorais” do tipo. O Carnaval foi finalmente assimilado por toda a sociedade brasileira e a repressão já não seria mais tão comum na década de 1920. Finalmente, com a Revolução de 1930, o Carnaval e o Samba (mesmo depois sob a censura do Estado Novo [1937]) se tornariam parte importante do patrimônio cultural brasileiro.
Agora, a ideologia identitária, diretamente dos Estados Unidos, quer impôr seu moralismo contra a cultura nacional, atacando o Carnaval, os bandeirantes, a Independência do Brasil, o surgimento da República, etc. Uma cruzada contra as fantasias ocorre todos os anos e preciso desmoralizá-la para o bem da festa popular!