A matéria “O projeto de Nação por trás do discurso de Lula sobre a mestiçagem como o lado bom da escravidão | PSTU”, assinada por Hertz Dias, e publicada no sítio do PSTU neste 16 de março, explora a fala de Lula sobre a mestiçagem no Brasil. A posição sectária que expressa não é exclusividade desse partido. Outros setores confusos da esquerda, ainda mais sob influência do identitarismo, batem na tecla de que miscigenação brasileira seja fruto de estupros.
O trecho da fala de Lula é o seguinte:
“Olha, toda a desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação. A mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita“.[Afirmação feita por Lula na segunda-feira, 13/03, em discurso na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, na terra indígena Raposa Serra do Sol].
O autor reclama que “apesar de muitos ativistas terem utilizado as redes sociais para criticar a fala do presidente Lula exaltando a miscigenação como o ‘lado bom da escravidão’, salta aos olhos o silêncio ensurdecedor da Secretária de Promoção da Igualdade Racial e do Ministério dos Povos Indígenas sobre esse lamentável episódio”.
O que há de lamentável na fala de Lula? Como se pôde ver, o presidente disse que, a despeito de a escravidão ter sido uma ‘desgraça’, resultou também ‘uma coisa boa, que foi a mistura’. Seu discurso traz uma coisa que a esmagadora maioria dos atuais moralistas da esquerda não consegue enxergar: a vida é contraditória.
Gostemos ou não, a Filosofia na Grécia, por exemplo, só foi possível porque uma parte da população não precisava trabalhar, dedicava seu tempo para pensar. Esse tempo ocioso se deveu ao fato de haver escravos trabalhando para os gregos. Não bastasse a escravidão, o homem tinha poder de vida ou morte sobre sua família, equivalendo a dizer que as mulheres estavam em uma situação um pouco melhor que os escravos.
Para quem gosta de criticar o patriarcado e a escravidão, a Grécia Antiga é um prato cheio. E escravizar não era exclusividade desta ou daquela civilização, o mais fraco militarmente era submetido. Egípcios escravizaram os hebreus (que tinham escravos) e foram posteriormente escravizados pelos romanos. Nada disso, porém, apaga as conquistas que essas civilizações produziram.
O Manifesto Comunista mostra que o trabalhador é um escravo moderno, apenas que não pertence a um senhor de escravo, senão a uma classe: a burguesia. Quem quer lutar contra a escravidão, não precisa recorrer ao Período Colonial, tem que lutar hoje.
A burguesia não liga
Segundo Hertz Dias, a fala de Lula não se tratou de “improvisação ou ignorância”, mas que “discursou sobre um tema que sempre foi muito espinhoso para a burguesia brasileira, a escravidão e o racismo, com um conteúdo que foi coerente com o projeto que a ‘Frente Ampla’ tem para o Brasil: o da (re)construção da unidade nacional. Projeto este que precisa de sua muleta político-ideológica, o da identidade nacional. Veremos que Lula não está inventando a roda em relação a este tema”.
Ora, somos obrigados a dizer que a burguesia brasileira não dá a mínima para escravidão ou para racismo. Sempre que pode a burguesia escraviza, exemplos não faltam, basta ler os jornais, inclusive os burgueses. Quanto ao racismo, o burguês apenas faz demagogia, pois a discriminação diminui os salários e, consequentemente, aumenta os lucros.
Essa história de ‘projeto que a Frente Ampla tem para o Brasil’ não passa de conversa. Não existe “projeto”. A pequena burguesia, especialmente essa que vive no ambiente asséptico dos meios universitários, adora esse palavreado. A toda hora nos deparamos com ‘projeto’, ‘estrutural’, ‘narrativa’ etc.
Em vez de enfrentar a burguesia, algo concreto; os pequenos-burgueses lutam contra um ‘projeto’, uma fantasmagoria. Contra um ‘projeto’, só podemos opor ‘outro projeto’. Para o acadêmico é ótimo. Apresenta seu projeto, ganha uma bolsa de estudos e fica escrevendo seus ‘projetos’ que, quem sabe? Podem até render livros e algum cargo bem remunerado no futuro.
É uma irrealidade afirmar que “As burguesias dependentes de quase todas as ex-colônias sempre se inspiraram nas teorias racistas da Europa para a construção dos seus projetos de nação. A brasileira também fez isso, mas por aqui criaram algo bem original que pudesse “responder” à nossa ímpar realidade, a do país mais negro fora do continente africano”. É difícil de imaginar um burguês brasileiro querendo responder a alguma coisa ou preocupado com o fato de o Brasil ter mais negros do que Portugal, França… enfim.
Mestiçagem e estupros
O texto diz ainda que “bem diferente do que se possa imaginar, a MESTIÇAGEM é um projeto político-ideológico autoritário, elaborado por uma vasta camada de intelectuais brasileiros do início do século XX para responder a essas questões. Autoritário porque se opõe à pluralidade étnica e cultural, isso sem contar a tentativa de amenizar os estupros praticados pelos senhores de escravos contra as mulheres negras e indígenas”.
Neste ponto, precisamos perguntar sobre a miscigenação entre negros e índios, qual seria o ‘projeto’? Devemos nos opor à mistura entre cafuzos e mamelucos? Quanto ao fato de os senhores de escravos abusarem das mulheres, isso é inegável. Porém, o que dizer de hoje? Vamos ficar eternamente presos ao nosso passado colonial? As pessoas se casam, se misturam, se miscigenam e não estão preocupadas com nenhuma ‘identidade nacional’.
Segundo Hertz Dias, “os defensores da MESTIÇAGEM acreditavam, não na valorização da pluralidade, mas na predominância do tipo biológico e cultural branco. Ou seja, a MESTIÇAGEM na verdade era um projeto que tinha como horizonte o etnocídio (desaparecimento cultural) e genocídio (desaparecimento físico) dos elementos não-brancos”.
Os senhores queriam se satisfazer sexualmente com suas escravas, não passava pela cabeça deles que deveria haver predominância ‘do tipo biológico e cultural branco’, muito menos tinham ‘como horizonte o genocídio (desaparecimento físico) dos elementos não-brancos’. Se os colonizadores lucravam com o trabalho escravo, que interesse eles poderiam ter no seu desaparecimento? Isso não faz o menor sentido.
Lula ‘genocida’
Existe uma lei imutável do Universo que diz que tudo pode piorar, como podemos averiguar neste trecho da matéria: “Não queremos dizer com isso que Lula defenda abertamente o genocídio afro-indígena, tal como fez o governo Bolsonaro. Porém, o discurso de Lula, na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, não era para os indígenas ali presentes, mas para a burguesia brasileira que quer urgentemente reconstruir a unidade de um país em decadência” (grifos nossos). É uma leviandade propor que Lula veladamente possa apoiar o ‘genocídio afro-indígena’ – que não passa de uma invenção – e ainda compará-lo a Bolsonaro. Qual burguesia brasileira quer ‘urgentemente reconstruir a unidade’ do Brasil? Os banqueiros, os rentistas, os golpistas do Centrão?
O texto recorre a Gilberto Freyre – de Casa e Senzala – para dizer que tanto Freyre quanto Lula omitem “que o mestiço da época escravista não era produto de uma relação afetiva recíproca entre o senhor e suas escravas, mas produto de estupros e que os filhos daquelas escravas, por mais clara que fosse a cor de suas peles, continuavam como escravos habitando e trabalhando compulsoriamente nas insalubres instalações das senzalas. A MESTIÇAGEM biológica jamais significou mestiçagem de riquezas”.
Para o autor da matéria, o brasileiro é fruto de estupros. Bem, se formos olhar a coisa por esse prisma, considerando as guerras tribais no Brasil e na África, as invasões que ocorreram na Europa e Ásia durante a antiguidade, somos obrigados a dizer que não estamos sozinhos nisso, o Planeta todo nos segue. Pesquisas já demonstraram que a maioria da população mundial é miscigenada.
Quanto à mestiçagem de riquezas, o que podemos dizer? Se, por exemplo, um homem branco e rico engravidar uma mulher branca e pobre, qual será a chance de haver ‘mestiçagem de riquezas’?
Raça pura?
As pessoas que dizem que a mestiçagem é genocídio, não estariam defendendo que deveria existir raças puras? Já vimos esse filme na Alemanha.
É falso dizer que “Essa ideologia da MESTIÇAGEM, além de autoritária, visa também a anular a organização e ação política dos movimentos antirracistas. Se somos todos mestiços, então não existe nem brancos, nem negros, nem indígenas. Assim, não existem racistas e nem racismo, sendo os movimentos antirracistas uma invenção de quem não tem o que fazer: puro vitimismo!”.
Antes, é preciso dizer que a mestiçagem não é uma ideologia, é um fato corriqueiro. Depois, é óbvio que o confinamento genético produziu etnias pelos diversos continentes. O preconceito racial sempre existiu, bastaria ler o Velho Testamento para constatar. No entanto, o fim da opressão só será possível com o fim das classes sociais; ou seja: sob o socialismo. Coisa que o autor do texto só reconhece no último parágrafo.
Todo esse debate sobre ‘projetos’, ou que ‘mestiçagem é genocídio’, serve apenas para enfraquecer a luta de classes. Já chega de ficar afirmando que o brasileiro é fruto de estupros, isso só serve para baixar a autoestima da população trabalhadora, o que, em última análise, só pode favorecer a burguesia.
A população trabalhadora não tem que fazer reparação de nada, a escrivadão é agora e esmaga a todos. A única coisa que temos de fazer é nos unir para derrotarmos o nosso inimigo comum: a burguesia.