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Ficção

Preso por claustrofobia

Sátira ironiza jurisprudência criada pelo STF a respeito da "homofobia"

Trezentas e oitenta e sete vezes vi o sol se espalhar por entre as minhas mais resistentes companheiras — as doze grades de minha adorável janela, impassíveis diante dos ferimentos à sua existência provocados com facas, lixas de unha, canivetes, barbantes e dentes —, até que um clemente juiz permitiu que eu pudesse, enfim, ser entrevistado. Em um sábado de manhã — mais sábado que de manhã, visto se tratar de um daqueles dias em que as grades cancelavam todos os raios de luz —, dom Sérgio, um jornalista-sociólogo, infelizmente em processo irreversível de se tornar um sociólogo-jornalista, portador de um finíssimo bigode e uma caneta grosseira, arrotou para mim um burocrático “bom dia”.

— Dia.

O fato de que os olhos de dom Sérgio davam mais valor ao bloquinho de notas em suas mãos que aos farrapos humanos à sua frente não me incomodava minimamente — ao menos me convencia de que ainda havia um jornalista por trás daqueles oclinhos hipócritas.

— Trouxe o que combinamos?

Oito maços de cigarro, quatro para mim e quatro para Benjamin, meu advogado semita e colega de cela (necessariamente nesta ordem).

— Como tudo começou?

Aquela cela mofada em que estávamos se dissolveu. Me vi novamente em outra cela, mas ao menos impregnada de perfume franco-paraguaio aplicado em excesso, expressando, em termos olfativos, o bom gosto do homem de meia-idade que pinta o cabelo de acaju. Ao meu lado, novamente Benjamin. À minha frente, não mais dom Sérgio, mas um anão de voz irritante:

— Audiência na ação penal 2424, depoimento da senhora Victor Assis da Silva…

— Excelência, se me permite, meu cliente escolheu designar a si próprio como uma pessoa binária do gênero masculino.

Pobre Benjamin. Hoje sem terno, nem brilhantina, não guarda 1% da confiança de outrora e cumpre, junto ao comandante do pavilhão, o papel que antes desempenhavam as suas estagiárias loiras.

— Fique então ciente que não poderá solicitar a cota de gênero para habeas corpus.

— Mas essa cota é inconstitucional! De acordo com o artigo quinto, sempre que alguém se achar ameaçado por ilegalidade ou abuso de poder, pode solicitar o habeas corpus.

Como será que o Benjamin de hoje, sem dentadura, falaria habeas borbus?

— Pode solicitar, mas não vai receber. Tenho uma pilha desse tamanho aqui — pôs a mão à frente do nariz, sinalizando algo em torno de um metro e quarenta — de habeas corpus no meu escritório. Não tenho tempo de julgar tudo, por isso, aprovo os pedidos de quem tem cota e jogo na lareira os de quem não tem.

— Excelência, mas compete ao Poder Judiciário seguir estritamente a Lei.

— Eu sigo estritamente a le…

— Não segue, meritíssimo.

— …xandre de Moraes e os ministros do STF. O que eles disserem é a Lei.

É, meu amigos. E fica pior.

— Saiba, doutor, que você acaba de ser incluído no processo de seu cliente.

— Por quê?!

— Me chamou de meritíssimo, e não meritíssima. Não viu a peruca?

— Vi, mas pensei que todo juiz usasse.

— Que eu saiba, no Brasil, além de mim, só o ministro Fux.

E foi assim que Benjamin tornou-se minha companhia compulsória no último ano.

— Dando sequência, eu, juíza Carlos Severino Fonseca, atualmente sem vara, convoco o senhor Victor Assis da Silva para responder às perguntas do Ministério Público.

— Agradeço pela oportunidade de falar nesta egrégia corte, cuja grandeza está representada na juíza Carlos Severino. Senhor Victor Assis, você foi acusado por seu psiquiatra de incorrer no crime de claustrofobia. O senhor nega as declarações?

Não detalharei a discussão entre meu advogado e a juíza Carlos sobre o “Ministério Público” ser, na verdade, o “Ministério da Mulher, do Gay e do Trans”, aceito na função promotória pela magistrada sob o pretexto de ser um ministério… público.

— Não. Mas claustrofobia não é crime. O significado de claustrofobia…

No-mans-plai-ning!

Braço direito, pescoço à esquerda, braço esquerdo e pescoço à direita: a cada sílaba, x ministrx da Mullher, do Gay e do Trans balançava uma parte do corpo.

— Dada a confissão do crime, o Ministério exige o cumprimento da pena máxima de cinco anos.

— Brilhante argumentação, ministrx. Mas preciso, para fins burocráticos, que você fundamente a decisão.

E lá se foi, explicando que o STF equiparou a homofobia ao racismo, depois a transfobia ao racismo, até determinar que toda fobia seria crime inafiançável… Eram tantas as sílabas que faltou parte do corpo para balançar, exigindo então que x ministrx balançasse sua condição biológica que demonstrava que seu esforço para se tornar mulher havia sido menos radical que aquele feito pela juíza Carlos.

—… sendo a claustrofobia uma das piores formas de fobia.

— Pela ordem, meritíssima.

— Negado. Prossiga, ministrx.

— Definimos claustrofobia como a aversão, pavor ou intolerância ao governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro. O termo é uma aglutinação dos termos “Cláudio Castro” e “fobia”. Como ele, dada a condição construída socialmente de gago, fala “Clá Clá Clá Clá-udio Ca-ca-ca-castro”, foi simplificado para claustrofobia.

— Protesto!

— Pena de seis meses acrescida ao advogado por ministrxfobia.

O pesadelo continuou, protagonizado pelx ministrx. Mostrou quatro tweets de Benjamin criticando o governador carioca por massacres realizados pela polícia.

— Reincidência, reincidência, reincidência. Mas doze anos de pena para o sr. Victor Assis.

— Mas foi seu advogado quem tuitou, não você — disse dom Sérgio, trazendo-me de volta para a cela mais fedida.

— A juíza Carlos alegou que eu o contratei mesmo ciente de que ele era claustrofóbico.

Claustrofobia, policiafobia, ministrxfobia, fobiafobia e sei lá mais o quê. Chegamos a cento e oitenta anos de cadeia para mim e duzentos e noventa e cinco para meu advogado, conversíveis em noventa horas de cursos educativos ministrados por Jean Wyllys, Márcia Tiburi e Coronel Telhada. Além das aulas, o encargo de comprar seus livros — no caso do coronel, que não era muito fã da escrita, seu walkie talkie favorito. “A deshomenificação da mulher do século XXI”, “se a polícia aparecer, não fuja” ou, simplesmente, “fuja”, eram os nomes de alguns dos cursos.

Olhamo-nos. O que seria pior? Benjarmin decidiu pedir pena de morte.

— Concedido.

Poderia ter terminado por aí. Acabaria nossa vida, mas não a nossa amizade. Maldito advogado e sua mania de querer estar sempre, sempre certo.

— A defesa ainda tem algo a declarar?

— Sim. Gostaria de, ao menos, definir corretamente o que é claustrofobia.

Se eu tivesse uma mala de dinheiro, despejaria todas as cédulas sobre seu nariz. Aprendi ao longo do tempo que era essa a única forma de lhe calar.

— “Medo exagerado e irracional de permanecer em ambientes fechados”. Receio, então, que a morte não seja a melhor forma de desconstruí-lo. Para aprender a conviver com a diversidade, com a diferença entre os ambientes fechados e os ambientes abertos, não pode haver pena melhor que a prisão perpétua.

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