Em João Pessoa, a vigilância identitária que apela para a polícia combater a “xenofobia” nas redes sociais reclama quando a mesma polícia acaba com uma festa de carnaval.
No final de janeiro passado, Adriana Borba, catarinense e esposa de um jogador do Botafogo/Paraíba, publicou em suas redes sociais um comentário sobre o sotaque e os costumes dos paraibanos. O vídeo viralizou e Adriana foi intimada a prestar esclarecimentos na delegacia sobre uma suposta prática de crime de racismo, previsto no art. 20, da Lei n. 7.716/89.
As palavras de Adriana foram:
“É muito fofo o sotaque, acho bonitinho, mas chega uma hora que você fica irritada. Sabe aquela pessoa que fica na tua frente: ‘oxe, minha filha, olhe esse preço desse aqui ó, devo levar ou não devo? Coisa cara da moléstia … A pessoa vai sozinha no mercado, não tem com quem ir para debochar”.
Adriana Borba
Esse comentário bobo, de uma pessoa solitária que está se adaptando a uma nova cidade, poderia ter passado despercebido. Mas, em tempos identitários, não basta polemizar com ideias com as quais discordamos. Sentir-se ofendido e atacado virou hábito a ser defendido a ferro e fogo pela polícia.
A sanha persecutória da turba nas redes sociais foi estimulada pela própria imprensa. O repórter esportivo da rádio CBN/PB, Fábio Hermano, tratou o caso como “lamentável e repugnante”. A revista Fórum classificou a fala de Adriana como “um show de xenofobia”. Os portais G1, UOL, SBT News e Metrópolis deram ampla repercussão para o caso.
Os órgãos persecutórios do Estado ouviram o apito e agiram com rapidez incomum. Adriana foi intimada pelo titular da delegacia de repressão à homofobia, racismo e intolerância religiosa de João Pessoa. A moça pediu desculpas e foi liberada sob a ameaça de processo criminal. O Ministério Público da Paraíba iniciou procedimento contra Adriana que, logo depois, foi encaminhado para o Ministério Público Federal por se tratar de crime objeto de tratado internacional e pelo vídeo ser acessível no exterior do país.
A confusão promovida pelo identitarismo
Nesse ponto, se não estivermos impregnados da ideologia identitária, deveríamos ser capazes de fazer três perguntas básicas sobre a caracterização do suposto crime que Adriana teria cometido: 1) como a honra é um bem exclusivo de indivíduos, a quem especificamente Adriana ofendeu? 2) como o “sentir-se ofendido” é algo subjetivo e variável, cuja existência sequer pode ser contestada, qual foi o dano objetivo/material que Adriana causou? 3) como a Lei n. 7.716/89 trata do racismo, por que está sendo invocada em um suposto caso de xenofobia?
Para as duas primeiras perguntas, o Judiciário brasileiro até hoje não deu resposta uniforme. As decisões dos tribunais superiores sobre os crimes de calúnia, injúria e difamação são absolutamente arbitrárias. O público e, em especial, os jornalistas estão expostos às inclinações morais e políticas de juízes e de policiais.
Já a terceira pergunta foi recentemente respondida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em novembro de 2022, em meio à acirrada campanha eleitoral, o STJ decidiu criar um novo crime por meio da interpretação extensiva da Lei 7.716/89. Desde então, a descriminação contra nordestinos passou a ser crime de racismo.
Uma das primeiras vítimas dessa atitude do STJ, proibida por lei e pela Constituição, foi o piloto de avião Eduardo Pfiffer. Ele foi condenado por racismo por ter publicado em suas redes sociais comentários grosseiros sobre o atendimento que recebeu em um restaurante de João Pessoa. Pfiffer vai ser obrigado a pagar uma multa de R$ 25 mil, a se retratar publicamente e – o mais ridículo da situação – ler e produzir trabalho acadêmico sobre crimes de ódio.
Originalmente, a Lei 7.716/89 definia apenas os “crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. Mas, desde que foi promulgada, vem sendo constantemente modificada para aumentar penas e incluir novos tipos penais. Em 1997, houve uma alteração legal importante que equiparou o racismo aos preconceitos de “etnia, religião ou procedência nacional”.
O Judiciário apoia a ampliação de seus próprios poderes. Em 2019, o STF incluiu a homofobia e a transfobia nesse artigo, sob o argumento de que “o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis”.
A alteração legal mais recente ocorreu há poucos dias antes do vídeo de Adriana Borba viralizar. Além da “discriminação ou preconceito”, agora a chamada “injúria racial” também é crime. Esses crimes foram equiparados na quantificação da pena, que foi aumentada de 1 a 3 anos para 2 a 5 anos de reclusão. Além do presidente Lula, assinaram essas modificações Flávio Dino, Silvio Almeida e Anielle Francisco da Silva.
Como o Judiciário brasileiro não tem jurisprudência firmada sobre os limites entre liberdade de expressão e o direito à honra, a única coisa que podemos prever é o aumento da perseguição judicial e policial contra o amplo debate público.
Identitarismo e repressão estatal
A ala identitária do novo governo também fez aprovar um dispositivo que permite a intromissão da polícia e do Judiciário nas artes e nos espetáculos públicos:
“Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.”
LEi Nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023
Esse aumento de pena tem boas e amorosas intenções: proteger pessoas vulneráveis contra “discursos de ódio”. Mas não demorou muito para esse expediente revelar sua verdadeira face. No último domingo (12/02), a polícia militar subiu no palco do tradicional bloco Viúvas da Torre e acabou com a festa de forma abrupta. O bloco havia firmado Termo de Ajustamento de Conduta com o MP/PB para finalizar o baile às 00h, no entanto a polícia se adiantou e às 21h10, sem que houvesse qualquer denúncia de pessoas do bairro, ameaçou prender o cantor Totonho caso insistisse em continuar a cantar.
Imagem Reprodução Internet
Para o identitarismo, certas opiniões são casos de polícia. Mas quem decide quais opiniões perseguir, no fim das contas, é a própria polícia. Historicamente, para a polícia, as manifestações populares é que devem ser reprimidas. Daí que a aliança de setores da esquerda com a imprensa monopolista, a polícia e o Judiciário só pode resultar no avanço do fascismo.
O interesse da imprensa monopolista é deter a exclusividade das opiniões válidas e respeitáveis. Por isso, educa o público a aceitar a censura e a introjetar a autocensura. A função da polícia é reprimir os trabalhadores e a população em geral. No Brasil, é uma corporação mortífera para jovens negros da periferia. O Judiciário é uma burocracia controlada pela burguesia e regiamente paga. Junto com a imprensa monopolista, foi um dos principais artífices do golpe de Estado de 2016.
Somente aos trabalhadores e suas organizações políticas interessam a defesa da ampla liberdade de expressão e dos demais direitos democráticos.