Em vídeo divulgado no dia 18 de outubro no Esquerda Diário, André Barbieri, editor do sítio, discute a “tradição trotskista na Palestina”, trazendo uma afirmação no mínimo curiosa: “Não compartilhamos nem dos métodos e nem da estratégia do Hamas, cujo objetivo é estabelecer um Estado teocrático burguês, com métodos que afastam os árabes e judeus”.
De fato, os trotskistas consideram um Estado confessional (onde o governo professa uma determinada fé) de tipo teocrático um reflexo do atraso, similar ao que vivem os milhões de palestinos habitantes de uma mistura de maior favela do mundo com o maior campo de concentração do planeta. Condições propícias ao florescimento de um fervor religioso que ainda, em meio à barbárie provocada pelo sionismo, termina ganhando um componente de identidade nacional muito forte. Nesse sentido, falar que o “Estado teocrático” defendido pelo Hamas afasta o povo árabe só pode ser dito por alguém totalmente alheio à realidade.
O Hamas, não custa lembrar, é um partido político com 74 das 132 cadeiras do Conselho Legislativo da Palestina, o parlamento unicameral palestino. A força do partido junto à população (sobretudo em Gaza) foi tamanha que permitiu a expulsão do Fatah da Faixa. Outrora um partido radical da luta pela libertação da Palestina, o Fatah capitulou, firmando os Acordos de Oslo com Israel, em 1993, reconhecendo o Estado sionista, mas desmoralizando-se ante o martirizado povo palestino, que apesar da traição, resistia à invasão de suas terras e toda a opressão sofrida, reconhecendo no Hamas a força política capaz de organizar a luta da nação ocupada.
Dizer que os métodos de luta adotados pelo partido da resistência palestina afastam “árabes e judeus”, além de demonstrar uma imprecisão absurda da realidade, está errado também por desconsiderar um fato óbvio: os judeus antissionistas do mundo não deixaram de apoiar a Palestina e, na prática, demonstram muito pouca consideração pelos “métodos” do principal partido político do país árabe.
Manifestações públicas em diversas localidades do mundo e também importantes centros urbanos com forte presença da comunidade judaica (caso da cidade norte-americana de Nova Iorque) evidenciam o contrário do que afirma o editor de Esquerda Diário.
Por outro lado, existe a corrupção dos governos dos países árabes, que assistem ao martírio da população palestina impassíveis. À revelia da enorme simpatia dos povos do mundo árabe pela causa palestina, tais governos revelam-se a versão árabe do entreguismo, a política deliberada da direita brasileira e latino-americana de governarem os países da região como “governadores-gerais” dos tempos coloniais.
Tal como aqui, os governos submissos ao imperialismo terminam por se corromper completamente e tornam-se inimigos abertos da própria população, além de, naturalmente, opor resistência ao desenvolvimento de uma política que unifique o mundo árabe. Isto tem ainda o pendor de facilitar o trabalho do imperialismo, de manter a ocupação sionista da Palestina, mesmo que a um severo custo humano para os palestinos.
O imperialismo, sim, é o verdadeiro entrave à união entre os povos árabes, não os métodos de luta do Hamas, os quais – é preciso dizer – são até muito moderados diante da brutalidade que os assola. A força da religião islâmica, por sua vez, é mero reflexo da força do islamismo entre o povo árabe, muito mais arraigado às tradições religiosas por terem elas próprias se tornado um elemento de coesão nacional e política.
Ao se tratar da resistência palestina, o estranho seria que ela fosse liderada por grupos que negassem a religião. Em uma localidade onde a fé tem um papel central na vida da população, é perfeitamente normal e até esperado que a consciência religiosa seja também um norte para a atuação política.
Ignorar a importância da fé demonstra um grande descolamento do mundo tal como ele é por parte de Barbieri. Finalmente, o que os militantes do Hamas pensam é secundário perto do que efetivamente estão fazendo: abrindo uma crise severa no interior do imperialismo.
Quem entende a fundo a questão palestina e percebe a centralidade da atuação dos monopólios imperialistas em defesa de Israel, valoriza a ação empreendida pelos militantes islâmicos, mesmo defendendo um Estado laico.O inimigo fundamental não é a fé deste ou a ideologia daquele grupo. É a ditadura global dos setores de ponta da burguesia mundial que precisa ser destruída e a ação valente dos companheiros do Hamas apressa este fim, o que é digno, sim, do mais entusiasmado apoio.