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Ainda sobre o 8 de janeiro

O que a esquerda tem a ganhar defendendo um Estado de exceção?

Impunidade iminente aos que participaram da invasão das sedes dos Três Poderes não pode dar lugar a defesa da barbárie jurídica

Cem dias após a invasão dos principais prédios públicos do regime brasileiro – as sedes do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e da Presidência da República -, uma coisa já ficou mais que evidente: os responsáveis pelo acontecimento não serão punidos. O recém-empossado governo Lula, eleito em meio a um esforço extraordinário de sua base, enfrentando a poderosa máquina do bolsonarismo e a mobilização de classe dos patrões, está dando, neste sentido, uma grande demonstração de fraqueza – isto é, uma incapacidade de enfrentar os seus inimigos de maneira enérgica.

Na medida em que a ficha vai caindo, os intelectuais pequeno burgueses que apoiam o governo vão adotando uma posição cada vez mais histérica e desesperada – o que é, por sua vez, um reconhecimento tácito de que as coisas não vão bem ou, em outras palavras, que o governo não tem força para fazer tudo aquilo que imaginavam. Uma expressão clara desse desespero são as posições do jornalista Paulo Moreira Leite, que, na época da invasão de 8 de janeiro, declarava:

O golpe foi derrotado por uma mobilização eficiente de setores da cúpula do Estado, a começar pelo STF e a Polícia Federal, em movimentos politicamente efetivos, que falavam diretamente aos anseios democráticos da maioria da sociedade brasileira. (…) No STF, Alexandre Moraes mostrou que um magistrado coerente com os princípios da Constituição que jurou defender pode desempenhar um papel insubstituível numa hora de crise. Demonstrando uma consciência clara da gravidade da situação, não teve receio de assinar sentenças com a dureza necessária — na hora certa, com precisão surpreendente, sem piscar.

Esse balanço, hoje, já adquiriu um caráter bastante negativo. Em artigo publicado no dia 13 de janeiro, intitulado “Perdão aos golpistas de 8 de janeiro será escândalo histórico”, Paulo Moreira Leite se mostra bastante preocupado com a tendência cada vez maior de que os manifestantes saiam todos impunes. O jornalista considera que “os vídeos e depoimentos divulgados em janeiro de 2023 são claros e diretos na descrição de um crime previsto em lei” e que “a punição aos golpistas de 8 de janeiro está definida de modo explícito no artigo 359-M, que prevê pena de prisão, de quatro a doze anos, para quem ‘”‘tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído'”.

A apreciação de Paulo Moreira Leite já começa equivocada por partir do princípio de que o grande problema do dia 8 de janeiro seria fundamentalmente jurídica – os culpados foram identificados, as provas foram colhidas, basta então aplicar o rigor da lei. No entanto, trata-se de um grande problema político: a gravidade do acontecimento não é a invasão em si, mas sim o fato de que as instituições do regime e uma parte do aparato alocado dentro do próprio governo permitiram que uma invasão que poderia ser facilmente contida fosse bem sucedida. Em outras palavras, o problema central a ser enfrentado é o fato de que o governo está sendo sabotado interna e externamente. Se o enfrentamento não se dá contra os generais e comandantes militares, que foram os grandes mentores da invasão, qualquer tipo de reação já é desmoralizante, ´já demonstra uma grande fraqueza.

E é justamente nisso que consistia a invasão: em uma demonstração dos generais de que poderiam fazer qualquer coisa contra o governo que não seriam punidos. Uma demonstração, portanto, de que “”quem manda” são eles – e que, portanto, Lula deveria pensar duas vezes antes de adotar qualquer medida que contrarie os interesses da direita.

Ainda que não fosse assim, que o problema central fosse punir os manifestantes, e não os seus mentores, a concepção jurídica de Paulo Moreira Leite é muito preocupante. Em primeiro lugar, o jornalista saca do seu paletó, como grande instrumento para defender um governo de esquerda, a tal Lei 14.197, sem fazer nenhuma advertência nem qualquer ponderação sobre o que o uso dessa lei poderá provocar a longo prazo. A lei, para que se tenha claro, é uma nova versão da velha Lei de Segurança Nacional da ditadura militar, apenas com algumas modificações elaboradas sob o crivo de Arthur Lira.

Ainda que o jornalista insista em defender a aplicação dessa barbaridade jurídica, alegando uma situação “excepcional”, ela jamais poderia ser aplicada, conforme defende Paulo Moreira Leite, contra tudo e contra todos. A lei prevê punição para quem “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Por esses critérios, não há um único manifestante que poderia ir preso. Em nenhum momento, os manifestantes tentaram depor o presidente da República. Ninguém proclamou uma república independente, nem tomou qualquer medida contra os poderes constituídos, nem sequer estava armado. Foi uma uma típica manifestação demonstrativa, com a reivindicação de que o TSE anulasse a eleição. Quando finalmente o aparato de repressão decidiu finalizar o protesto, os manifestantes “guardaram a viola no saco” e foram embora.

Os manifestantes poderiam, no entanto, serem acusados de vandalismo, dado o fato de que houve a destruição de parte do patrimônio público, incluindo obras de arte. O problema é que, para acusar alguém de vandalismo ou de qualquer outro crime, seria preciso enquadrar individualmente cada pessoa e comprovar a sua participação. Dito de outra forma, não é possível prender 1,3 mil pessoas por “vandalismo”, uma vez que, evidentemente, a maioria dessas pessoas não quebrou nada. É preciso comprovar quem de fato quebrou alguma coisa e quem apenas participou da manifestação.

Defender o contrário é defender a existência de “crimes coletivos”, e não “crimes individuais”. Tal coisa é uma barbárie jurídica, é um anti-Direito. Algo que não se sustenta e só serve a ditaduras. Se Paulo Moreira Leite defende que as pessoas que foram para uma manifestação sejam presas porque algumas delas cometeram um crime, chegará no ridículo de defender que, em uma manifestação de cem mil pessoas, todos sejam presos porque uma pessoa decidiu assassinar a outra com um canivete. Basta que o juiz determine que a “intenção” do ato era provocar um assassinato, que está todo mundo na cadeia.

Já se vê esse tipo de barbaridade sendo utilizado largamente contra a esquerda. O caso do companheiro Magno Souza, do PCO, o único candidato ao governo do Estado em 2022 que era índio, é exemplar. Magno foi preso recentemente e, entre as acusações, está a de “porte de arma”. O problema é que o porte de arma, segundo o juiz, não era de Magno, mas sim das oito pessoas que foram presas em uma ocupação. Quer dizer, a polícia teria achado uma arma – que pode muito bem ser implantada – e como não conseguiu – ou não quis – comprovar a quem pertencia -, decidiu estabelecer que havia um “porte de arma compartilhado” e, com isso, agravou a prisão de todos os que estariam sendo acusados de invasão de propriedade.

É provável que Paulo Moreira Leite e outros argumentem que toda essa preocupação com o rito legal inviabilize qualquer tipo de punição. Primeiro, é preciso ter claro o que foi dito no começo – o desfecho jurídico não é decisivo para o governo, mas sim o enfrentamento político. O governo não ficará protegido com alguns manifestantes na cadeia, mas sim se conseguir dar uma demonstração de força perante os seus adversários – isto é, se conseguir demonstrar seu potencial de mobilização. Em segundo lugar, é preciso levar em consideração que o Direito deve servir para garantir a Lei, e não para atender interesses de ocasião. Do contrário, o que temos é um um tribunal de exceção.

O problema em questão não é de pedir perdão para ninguém, mas sim que a lei seja seguida. Não adianta nada prender os manifestantes se o custo disso for transformar o País em uma ditadura.

Se a esquerda continuar com essas concepções, ainda que movida por boas intenções, causará um grande desastre. O fortalecimento do Estado e a defesa do Estado de exceção, conforme a história já mostrou inúmeras vezes, acabará se voltando com todas as forças contra a esquerda no momento em que ela precisar contestar a ordem vigente.

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