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Henrique Áreas de Araujo

Militante do PCO, é membro do Comitê Central do partido. É coordenador do GARI (Grupo por Uma Arte Revolucionária e Independente) e vocalista da banda Revolução Permanente. Formado em Política pela Unicamp, participou do movimento estudantil. É trabalhador demitido político dos Correios e foi diretor da Fentect (Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios)

Negrinha, 1923

Monteiro Lobato antirracista

O "racismo" de Lobato não apenas é um calúnia e uma fraude, ele serve para atacar um dos maiores escritores brasileiros

Em 4 de julho de 1948, há 75 anos, morria o grande escritor brasileiro Monteiro Lobato. O aniversário de morte de talvez um dos maiores escritores de literatura infantil do mundo e um dos grandes escritores brasileiros do início do século XX passou em branco.

A burguesia brasileira, amante febril do imperialismo, dissemina entre o povo certo desprezo pelas coisas de nossa terra. Assim, grandes artistas, grandes esportistas, inventores etc são tratados como de menor importância, quando não são simplesmente esquecidos.

O caso dos 75 anos da morte de Lobato, em julho, faz parte desse desprezo pelas coisas do Brasil. Mas em se tratando de Lobato, é provável que há ainda outro motivo para o esquecimento da data: a grotesca campanha de cancelamento de um autor morto há mais de sete décadas, baseada na calúnia de que ele era “racista”.

A ideia absurda de que Lobato era racista vem já de algum tempo. Desde que o identitarismo começou aos poucos a ser infiltrado nos meios universitários brasileiros, Lobato foi uma das principais vítimas.

Basta uma rápida pesquisa no Google e o leitor poderá encontrar uma série de artigos defendendo a tese do racismo do escritor. Alguns “provando” tal acusação, outros tentando explicar. Mas fato é que apenas o aparecimento de tal discussão já é uma calúnia que serve apenas para avacalhar um grande personagem da história nacional.

Apenas para pegar algo aleatório, a revista Carta Capital, trazia em seu portal na internet, em 2013, a seguinte matéria: “Monteiro Lobato, racista empedernido”. Segundo o autor, Maurício Dias, “Lobato, um influente autor brasileiro do século XX, era racista de perigosa influência nos bancos escolares”. A sentença já está dada é um “perigo para nossas crianças”. Ficamos até com a impressão de estarmos diante de algum comentário moralista religioso.

A discussão sobre o “Monteiro Lobato racista” foi suscitada, ao menos com mais força, em 2010, quando o Ministério da Educação cogitou retirar o livro Caçadas de Pedrinho na lista do Programa Nacional Biblioteca na Escola.

O que mais se diz do suposto “racismo” é o trecho em que está dito: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida”. Aqui, nitidamente falta a muitos brasileiros que se acham intelectuais o mínimo conhecimento de interpretação de texto.

Não pretendo nessa breve coluna explicar alguns pormenores da discussão. A partir dos “trechos racistas” do livro passou-se a falar da vida de Lobato. Teria sido defensor da Ku Klux Klan e adepto da ideologia eugenista.

Todas as acusações são passíveis de discussão e de uma forma ou de outro são ridículas.

Chama a atenção também que a aproximação de Lobato do Partido Comunista, sua prisão pela ditadura do Estado Novo, sua campanha pelo petróleo e o ferro não pesam na hora de apresentar o escritor como grande “racista”, como se ele fosse a própria encarnação de Hitler no Brasil.

Tudo é muito ridículo e podemos discutir os pormenores em outro momento.

Como todo escritor, Lobato falou coisas erradas, defendeu coisas absurdas, mas até aí, ninguém é obrigado a ser perfeito. O que interessa é sua belíssima obra como escritor, arrisco-me dizer, um dos maiores contistas que o Brasil já teve. Além, é claro, da importância de sua obra infantil.

São essas coisas que deveriam ser exaltadas.

Os detratores de Monteiro Lobato, que se arrogam grandes conhecedores de sua obra, não sabemos se por ignorância ou má-fé, não falam de um dos seus principais contos, Negrinha, de 1923. 

O conto é uma denúncia crua da situação do negro no início do século XX, ou seja, pouco mais de 20 anos depois da Abolição. O conto é belíssimo e é impossível para quem o lê não se indignar com a situação da personagem principal.

“Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste…

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça.”

Se Lobato foi “racista” mil vezes – o que não é fato -, como afirmam os identitários, em Negrinha ele faz muito mais pela luta antirracista do que qualquer identitário de hoje. Só esse conto já deveria colocar Monteiro Lobato entre os grandes, mas ele tem muito mais do que isso.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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