A Revista Fórum, que atua dentro de um setor de esquerda, mas que desempenha o papel de favorecer justamente a direita tradicional, golpista, aquela que a imprensa capitalista chama de “progressista”, “civilizada” ou coisa semelhante, publicou, no último dia 16, artigo do professor Francisco Ladeira, no qual o autor procura apresentar um balanço das eleições argentinas em que se repete a ideia dominante na direita e na esquerda brasileira de que Javier Milei seria uma espécie de Bolsonaro argentino.
Esclarecendo as primárias
Antes de mais nada é preciso esclarecer o que representam as PASO (Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias) que foram implantadas na Argentina em 2009, com o claro objetivo de estabelecer uma cláusula de barreira, retirando do processo eleitoral propriamente dito a maioria dos candidatos, isto é, os que não alcançmm 1,5% dos votos.
É preciso entender que as PASO são já uma etapa da eleição, pois não se trata de uma prévia dentro dos partidos, como acontece no caso do sistema eleitoral norte-americano, onde votam apenas os integrantes do Partido Democrata e do Partido Republicano. Na Argentina, o que temos é uma eleição oficial do Estado, na qual podem votar todos os eleitores.
Para as PASO do último dia 13, por exemplo, foram inscritos 27 candidatos presidenciais de 15 partidos ou coalizões. Destes, cinco foram previamente vetados de participar das primárias. Dos 22 que sobraram, apenas cinco conquistaram o percentual mínimo para se apresentarem nas eleições, cujo primeiro turno acontece em outubro.
Trata-se de um quadro complexo, que não deveria ser analisado com leviandade como fazem a maioria dos autores, que – desta forma – acabam seguindo as “análise” interessadas da imprensa capitalista, atuando como verdadeiros ventríloquos.
No caso das PASO, a direita de conjunto colheu uma vitória expressiva, tendo colhido cerca de 60% dos votos. Libertad Avanza, de Javier Milei, ficou com 30.04% dos votos, seguida de Juntos por el Cambio, que obteve 28,8%, com dois candidatos: Patricia Bullrich, com 16,98% e Horácio Larreta, com 11,3%. Somados os votos de outros grupos direitistas que não superaram a cláusula de barreira, a direita teve apoio de cerca de 70% do eleitorado que compareceu às urnas ou cerca de 50% do eleitorado total argentino, sendo amplamente vitoriosa.
Esses resultados, em um primeiro momento, tornam muitíssimo reduzidas as chances de uma vitória da ala direitista da esquerda nacionalista, que tem como candidato o ministro da Economia, Sérgio Massa, que obteve 21,24% dos votos. Sua coalizão, Unión por la Pátria, obteve no total 27,27% (considerando-se os 5,87% de Juan Grabois).
Após o candidato de extrema-direita, Javier Milei, ter sido anunciado com o grande vencedor das eleições primárias na Argentina (com real possibilidade de ser eleito presidente do país platino no próximo mês de outubro), muitos brasileiros, corretamente, pensaram: “já vi esse filme”.
Outra realidade
A Argentina chega às eleições em um quadro de acentuada degradação econômica, com mais de 115% de inflação ao ano, e com números de fome e desemprego maiores do que os gigantescos que temos no Brasil. Aqui a situação se agravou, e muito, após seguidos anos de golpe de Estado, aprofundando a onda neoliberal imposta ao País na famigerada era FHC – da qual nunca nos recuperamos, de fato; mas que teve momentos de relativa estabilização (em condições muito ruins) nos anos dos governos de Lula e Dilma, e voltaram a decair acentuadamente nos governos de Temer e Bolsonaro.
No país vizinho, há quase quatro décadas de submetimento às políticas neoliberais, os momentos de “respiro” foram bem menores e a “segunda onda” neoliberal, aqui imposta com o golpe e os governos de Temer e Bolsonaro, foi imposta ao País há duas eleições atrás com a chegada ao governo do neoliberal Mauricio Macri (2015-2019), provocando uma nova onda de devastação ao País.
O autor parece desconsiderar essa realidade e simplesmente destaca semelhanças artificiais entre o ex-presidente brasileiro e o candidato da extrema direita argentina, destacando, por exemplo, que
“são várias as semelhanças entre Milei e Jair Bolsonaro: supostamente outsiders e combatentes do “sistema” (no caso do argentino, da “casta”), fama a partir de aparições em programas popularescos, admiração por Donald Trump, defesa de ideias neoliberais, posturas armamentistas, ódio à esquerda e por aí vai“.
Seguindo esta linha de raciocínio, Ladeira afirma que as eleições argentinas seguiriam o “roteiro” das eleições capitalistas em quase todos os países, apelando de forma indevida para o marxismo. Segundo ele,
“o fenômeno Milei não é familiar apenas para nós, brasileiros; trata-se de um “filme” constantemente em cartaz no sistema capitalista. De acordo com uma conhecida máxima do marxismo, a extrema-direita é uma carta na manga da burguesia, pronta para ser utilizada em momentos de crise, quando a direita tradicional não dá mais conta de manter os lucros do grande capital. Foi assim com Mussolini na Itália; com Hitler na Alemanha; com o próprio Bolsonaro no Brasil; e, se for necessário, com Milei na Argentina”.
Sem basear suas conclusões em uma análise concreta, material, dos acontecimentos, como fazem os marxistas, o professor se lança em afirmações sem se dar ao trabalho de explicar, por exemplo, de onde tira a conclusão a respeito da opinião real da burguesia argentina quando afirma que Milei
“não é o preferido da elite argentina para governar o país (tampouco de seus congêneres estrangeiros). O nome preferido para colocar em prática a agenda neoliberal de terra arrasada na Argentina é Patricia Bullrich, da coalizão política Juntos por el Cambio “
Desespero argentino
Ladeira deixa de lado o fato de que, muito diferente de Bolsonaro, Milei se apresenta, do ponto de vista econômico, como ultraneoliberal, e se propõe a acabar com todos os direitos sociais dos trabalhadores, dolarizar a economia argentina para torná-la literalmente um apêndice do Banco Central norte-americano. O que, muito claramente, evidencia o tamanho da confusão política que se instalou na Argentina em que se criou as condições para ele tivesse mais de 30% dos votos.
Deixa de lado, também que os governos da extrema direita são produtos, em certa medida, do fracasso dos governos da esquerda, os quais buscam conciliar, com os verdadeiros donos do regime político capitalista e seus representantes políticos, seus governos de “frente ampla”, de “unidade”, protegendo os interesses da direita de conjunto, frustrando as expectativas populares, adotando o programa da direita de austeridade, contenção de gastos públicos, novos ataques aos trabalhadores etc.
Não consegue entender as contradições no interior da própria burguesia e considera que a burguesia seja genuinamente democrática e não a principal impulsionadora de todos os regimes fascistas e ditatoriais contra a maioria do povo.
Segundo ele, a imprensa capitalista brasileira teria apoiado Bolsonaro, sem dizer que ele era de extrema-direta e já a argentina estaria – por ora – se opondo ao radical de direita.
“Em uma linha editorial oposta, na mídia brasileira, o vencedor das primárias argentinas é tratado como realmente é: um nome de extrema-direita. Algo bastante diferente do que foi noticiado sobre Bolsonaro em 2018”.
Como se a imprensa capitalista argentina – e toda a burguesia – não estivesse disposta a apoiar e impulsionar Milei, junto com o imperialismo, para defender seus próprios interesses contra o povo argentino e latinoamericano.
Da mesma forma , desconsidera que setores da burguesia brasileira (e da sua imprensa) e o imperialismo (que manda na imprensa “nacional”) podem se aliar ao suposto Bolsonaro argentino, por conta dos seus interesses reais na luta contra a esquerda real, liderada por Lula em todo o continente e, de certa forma, no mundo.
Ilusão no futuro brasileiro