Um perfil no Twitter identificado como José Luiz Freire (@jlanetomcp) publicou no último dia 7 de abril um corte de uma fala do youtuber Ian Neves, onde este nega a existência de uma cruenta perseguição política empreendida por José Stálin na antiga União Soviética. Em uma exibição grotesca de cinismo, Neves declara em alto e bom som que “mesmo Trótski, uma das pessoas que dizem ter sido perseguido, foi exilado, não foi assassinado lá”. Perplexo, seu interlocutor questiona: “mas ele [Trótski] não foi assassinado depois?”, ao que o entrevistado responde:”Ele foi assassinado em 1940 e não se sabe exatamente em que circunstâncias. Claro que os trotskistas vão pular na frente e dizer ‘foi o Stálin’, [mas] o difícil é provar.”
Irrefreável, Neves apela ainda para uma comparação simplesmente esdrúxula entre o caso e as acusações da direita contra o presidente Lula: “os bolsonaristas falam que Lula é criminoso, o difícil é provar”, conclui. Sabendo que tais declarações desafiam a credulidade de qualquer pessoa normal em relação a este órgão de imprensa, publicamos abaixo o link em que tais disparates são proferidos:
As afirmações são chocantes, mas de modo algum surpreendentes. Em primeiro lugar, é preciso destacar a incongruência lógica entre negar a existência de uma severa perseguição política na URSS durante o governo Stálin e o exílio de Trótski. O segundo e mais importante aspecto da mentira deslavada dita por Neves diz respeito à política da farsa, que embora desmoralizante para quem a ela recorre, cumpriu um papel importante para as forças reacionárias dentro do movimento dos trabalhadores.
São notórias as loucuras cometidas pela burocracia soviética nesse campo, destacadamente o engrandecimento fantasioso da história militante de Stálin, fotografias e filmagens editadas de modo a apagar a presença e/ou diminuir a importância de Trótski. A falta de limites levou inclusive à produção de obras como o filme Outubro, de Eisenstein, um belo filme sem dúvida, mas uma propaganda do georgiano, apresentando-o como um dos maiores entusiastas do golpe revolucionário de Outubro de 1917, entre um sem número de manipulações risíveis a qualquer um que conheça minimamente a história da tomada do poder pelos bolcheviques.
De um ponto de vista ultra-esquemático, quem realmente matou Trótski não foi Stálin, mas um cidadão espanhol chamado Ramón Mercader. Agente do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD na sigla russa, antecessor da KGB) da União Soviética (URSS), sua função era reprimir os dissidentes do stalinismo. Em outubro de 1939, Mercader infiltrou-se no México, onde o principal militante bolchevique vivo então refugiou-se após o desterro sofrido.
Finalmente, em agosto de 1940 e fazendo uso de uma pequena picareta de alpinismo, o agente stalinista golpeou mortalmente o dirigente da IV Internacional. Ao fim de sua pena, em 1960, mudou-se para Cuba e posteriormente para a URSS, onde foi condecorado pela burocracia com a comenda Herói da União Soviética, já sob o governo de Nikita Khrushchev. Coincidência?
Naturalmente que não. Sem outro feito digno de recordação para justificar sua condecoração, o assassinato de Trótski por Mercader cumpriu a importante tarefa de impedir o ucraniano de simplesmente existir, o que representava uma séria ameaça à ditadura de Stálin. Com a URSS devastada e propícia à agitação política, essa execução permitiu a sobrevivência do stalinismo após a Segunda Grande Guerra. De outra forma, seria impossível à burocracia manter o controle de um país destruído enquanto as falsificações tipicamente stalinistas que se seguiram à derrota de Hitler fossem desmascaradas e todos os alertas de que a guerra aconteceria fossem lembrados, assim como as críticas aos inúmeros erros cometidos pelo governo burocrático ao tratar da ameaça nazista.
Essa pequena recapitulação dos fatos históricos deve ser levantada porque ao contrário do que diz Neves, sobram evidências de que a morte do organizador da IV Internacional foi sim um plano orquestrado pelo governo soviético. Um dos últimos vivos após o assassinato de praticamente toda a geração que participou da Revolução de Outubro, a morte de Trótski já era esperada pelo dirigente e como visto, fazia todo sentido do mundo para a burocracia, os únicos beneficiados por sua execução.
Por razões óbvias, nem Mercader e nem ninguém do governo soviético assumiu a autoria das execuções, seja de Trótski, seja de outras vítimas do stalinismo, mortas em circunstâncias similares. Fazê-lo seria uma forma de engrandecer os executados, o que não poderia ser tolerado pela ditadura stalinista.
Nesse sentido, esperar uma comprovação jurídica (absolutamente necessária para se condenar um homem à cadeia, seja o presidente Lula ou quem quer que seja) como faz o youtuber é uma mera artimanha. É simplesmente desnecessário a observância das formalidades jurídicas quando o quadro geral deixa claro que o assassinato de Trótski beneficiava Stálin, seu assassino obedecia às ordens do burocrata e décadas após o crime, Mercader fora agraciado com honrarias pelo governo stalinista. Só o mais obtuso cinismo pediria qualquer outra evidência.
Declarando-se em seus perfis nas redes sociais como um “marxista-leninista” (uma forma envergonhada de se dizer admirador de Stálin, embora não declare militar em nenhum partido), Ian Neves repete as falsificações mais grotescas que tornaram-se uma das principais marcas do stalinismo, de modo que sua condição de admirador do chamado “Grande Guia dos Povos” (um epíteto tão faraônico que nenhum marxista sério se atreveria a ostentá-lo), torna possível a possibilidade de a cara de pau do youtuber ser na realidade um ode, uma homenagem ao stalinismo. Uma declaração de amor se o leitor preferir.