Em abril de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o deputado federal Daniel Silveira (PRT-RJ) a incríveis oito anos e nove meses de prisão pelo que foi chamado genericamente na imprensa de “ataques às instituições democráticas”. Fazendo uso de uma prerrogativa constitucional, o então presidente Jair Bolsonaro concedeu indulto ao deputado, evitando assim sua prisão. Os ministros do STF focaram inicialmente em manter a perda do mandato e dos direitos políticos de Silveira e agora agem para derrubar o indulto presidencial.
Os graves crimes cometidos foram “a tentativa de impedir o livre exercício dos poderes” e “coação em processo judicial”. A vítima, o próprio STF, que tem sido vítima de muita coisa ultimamente. Mas com a diferença de ser uma vítima muito especial, dotada de superpoderes jurídicos, que extrapolam livremente o texto das leis. Os “crimes” cometidos contra a corte teriam ocorrido em um vídeo publicado pelo então deputado federal, onde defendeu o Ato Institucional nº5 (AI-5) da ditadura militar e a destituição dos ministros do STF. Nesse caso, para embasar a prisão de Silveira, Alexandre de Moraes evocou os seguintes artigos da Constituição Federal:
– Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
(Um uso bastante adequado, se considerarmos que palavras são perigosas armas.)
– Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
III – pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV – garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação.
(Aparentemente, com suas palavras, o então deputado federal abalou a “ordem pública” e impediu que o STF agisse livremente. O mesmo STF que então ordenou a prisão do mesmo.)
Gostando ou não de como Bolsonaro agiu para resguardar seu aliado político, é preciso admitir que sua interpretação da lei é muito menos criativa quando comparada com a dos ministros do STF. O indulto ou graça presidencial está previsto tanto na Constituição Federal quanto no Código de Processo Penal. O inciso XII do artigo 84 da CF diz que:
“Compete privativamente ao Presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”.
Já o artigo 734 do CPP diz que:
“A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente”.
No seu voto pela derrubada do indulto presidencial, a presidenta do STF Rosa Weber argumentou que o ato teria sido inconstitucional, pois teria sido “absolutamente desconectado do interesse público”, além de ter como objetivo “beneficiar aliado político de primeira hora legitimamente condenado criminalmente pelo STF”. É notável a criatividade dos juízes da corte, pois o texto da Constituição Federal reproduzido acima não pontua nenhuma condição para a prerrogativa presidencial.
Ainda nesta quinta-feira, 4 de maio, o STF já formou maioria contra o indulto a Silveira com seis votos para que o ato seja considerado inconstitucional. O voto de Rosa Weber foi seguido pelos ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. Os votos contrários ficaram por conta dos ministros indicados por Bolsonaro: André Mendonça e Nunes Marques. Ainda estavam por votar Luiz Fux e Gilmar Mendes.
Nesse cenário de demolição da Constituição Federal, a esquerda inconsequente vibra. Os desmandos da corte são relevados, pois vale tudo contra o “fascismo”. Fascismo esse que estaria materializado exclusivamente na figura de Bolsonaro e de seus apoiadores mais explícitos, como o próprio Silveira. O alto comando militar, por exemplo, não entra na mira dessa “luta antifascista”. Nem muito menos o próprio STF, que ajudou a derrubar o governo Dilma Rousseff e a eleger Bolsonaro com Lula fora do pleito em 2018. Entre outras arbitrariedades flagrantes, como o bloqueio das redes sociais do PCO durante todo o processo eleitoral de 2022.
Os mecanismos de atropelamento dos demais poderes que estão sendo estabelecidos pelo STF podem ser e serão usados contra o esquerda quando a burguesia precisar. Parecem ter comprado a ideia de que Bolsonaro resume em si mesmo não apenas o “fascismo” mas também toda a direita. Enquanto isso, os setores mais tradicionais da direita passam bem longe do radar do STF e jamais serão atingidos por essa corte. Já o PT e a esquerda devem se preparar para enfrentar toda essa criatividade jurídica do STF.