Estabelecida durante o governo golpista de Michel Temer, a moratória que impedia a criação de novos cursos de medicina no Brasil venceu em abril e não foi prorrogada. A medida travava o mecanismo de ampliação da formação de novos profissionais estabelecido na lei que criou o Projeto Mais Médicos para o Brasil. Ainda em abril foi publicada portaria do Ministério da Educação (MEC) que abre o caminho para sejam ampliadas as vagas nos cursos de medicina e estabelece alguns critérios para a distribuição delas.
Agora, duas ações se encontram nas mãos do ministro do STF Gilmar Mendes. Uma apresentada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) e outra pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub). A primeira defende a exigência de chamamento público para a abertura de novos cursos particulares de medicina e a segunda, a suspensão dessa exigência, que beneficiaria os grandes grupos econômicos.
Esse é mais um ponto que choca o governo atual com o regime estabelecido a partir do golpe de 2016. No último ano do mandato fraudulento de Temer, a burocracia médica fez pressão e o governo enterrou o “Mais Médicos” com uma canetada. O argumento cínico era que a ampliação da oferta implicaria em perda de qualidade na formação dos profissionais, por isso seria importantíssimo discutir exaustivamente os critérios para que novas vagas fossem autorizadas.
Mas mesmo com tanta onda, a realidade é que um brasileiro comum não consegue perceber essa suposta “excelência” no exercício profissional. Especialmente aqueles que nem têm acesso a esses tais médicos, o que inclui até moradores de bairros populares nas capitais mas atinge principalmente os brasileiros das áreas rurais. Entre eles temos os índios, que todos adoram para fazer demagogia, mas que têm suas necessidades reais ignoradas.
Como não pega bem admitir publicamente que não ligam a mínima para os pobres brasileiros desassistidos, as entidades médicas se escondem atrás de uma defesa mal encenada da qualidade dos cursos. Passaram-se cinco anos de vigência da moratória e nada fizeram no sentido de construir uma ampliação com a tal qualidade. Como a própria Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) admitiu para O Estado de São Paulo: “o grupo de trabalho previsto pela portaria nunca se efetivou a contento, reunindo-se 50 meses após o prazo previsto e, portanto, não produzindo parâmetros adequados para a regulação e expansão de cursos e vagas de medicina no Brasil”.
Enquanto isso, no limbo jurídico criado pelo bloqueio do mecanismo legal de abertura de vagas, se acumularam ações judiciais em busca da autorização. Segundo informações prestadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) à Folha de São Paulo, durante esse período foram criadas através de liminares cerca de 6 mil vagas. Isso também desagradou as entidades médicas, que evocam essa preocupação com a tal qualidade sempre que se fala em formar mais médicos.
É preciso denunciar que a única qualidade que a burocracia médica se preocupa é com a qualidade dos seus privilégios. Quanto mais elitizada for a profissão, mais regalias são gozadas. Mais distante a população fica dos médicos e mais sapo tem que engolir mesmo quando consegue acessar os serviços de saúde, afinal tem que aproveitar que tem um médico. Ser mal atendido é melhor que nem atendido ser. Mantendo supercontrolada a oferta de novos profissionais, essas entidades garantem um grande poder de barganha política. Um poder ao qual essa camada da pequena-burguesia se agarra com fervor.
Para além dos problemas políticos gerados por essa chantagem da elite médica, temos milhares de pessoas que morrem todo ano no Brasil pela falta de médicos. Diante da mesquinhez desses burocratas, um país gigantesco mantém uma concentração enorme de médicos nas cidades mais ricas e um verdadeiro deserto no restante. O governo enfrenta agora uma forte resistência para ampliar a assistência médica para a população e o STF aparece novamente como o árbitro de algo que não é meramente legal, mas político.