A próxima edição da revista Zona do Agrião trará uma crônica do grande escritor Lima Barreto, sobre o futebol, “Herói!”.
O principal biógrafo de Lima Barreto, Francisco de Asis Barbosa, conta que o escritor não era muito fã de futebol. Na verdade, não ser “muito fã” é um grande eufemismo de nossa parte. Lima Barreto chegou mesmo a querer organizar uma “Liga contra o futebol”.
Em seu romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, por exemplo, ele trata com certa ironia os jornalistas especializados nos resultados esportivos.
Em defesa do grande escritor brasileiro, um escritor proletário, podemos dizer que Barreto não teve a oportunidade de assistir à transformação do futebol num esporte de massas no Brasil, mais ainda, na criação do futebol-arte, tipicamente brasileiro.
Barreto morreu em 1922. O futebol ainda dava seus primeiros passos no Brasil e ainda não havia deixado completamente de ser um esporte jogado pela burguesia. Embora nas décadas de 10 e 20 muitos pobres já se aventurassem a disputar a pelota com os ricos, fato é que Barreto não pode ver a transformação definitiva do futebol de um espore praticado pelos ricos para um esporte dominado totalmente pelos negros e brancos pobres.
Apesar disso, a crônica a seguir revela a astúcia do escritor em perceber como o futebol já se tornava presente na vida dos brasileiros. E o que ele relata com certa ironia ao tratar de um pequeno-burguês, o rapaz “virou herói nacional” jogando futebol, hoje é o sonho de oportunidade de muitos jovens pobres.
“Herói!”
Por Lima Barreto
“Os dois velhos amigos desde meses que não se encontravam. Exerciam profissões diversas, em lugares afastados da cidade. Um, o Felisberto, era médico de um posto de profilaxia rural, pelas bandas de Santa Cruz; e o outro, o Teodoro, estava encarregado, como engenheiro, dos mananciais da Gávea e do Jardim Botânico. Moravam nos arredores das suas repartições e raramente desciam à cidade, a não ser para receber, no Tesouro, no começo do mês, os vencimentos de seus cargos.
Eram dois filósofos a seu modo que nada perturbava. Revoltas, exposições, discurseiras, fogos de artifícios – tudo isso os deixava frios. Uma coisa, porém, estava sempre a preocupá-los: a educação dos filhos. Nenhum dos dois foi feliz com eles. Felisberto, além de outros, tinha o mais velho, Samuel, que não dera para nada. Tudo estudara e nada aprendera. A sua mania era o tal do football. O pai lutou em vão para que metesse no bestunto algumas noções com que ele pudesse ser, ao menos, amanuense. Era inútil. Desde de manhã até à noite, não fazia outra coisa senão dar pontapés na bola, discutir corners e o mérito dos rivais. Não ganhava dinheiro; mas, graças à mãe e outros arranjos, tinha-o sempre na algibeira.
O filho mais velho de Teodoro, se não era dado a brutalidades esportivas, não possuía iniciativa de coisa nenhuma. Formara-se em direito e foi o pai quem lhe arranjou um emprego de guarda no cais do porto, apesar de anel e tudo.
Há anos, tendo, por acaso, se encontrado os dois velhos amigos, Felisberto perguntou-lhe o que fizera de seu filho mais velho, formado em direito.
O que fiz? Fi-lo guarda do cais do porto!
Como? Um bacharel?
Por certo.
Pois o meu, por não dar pra nada, deixei-o no football.
Como dizia acima, esses dois velhos amigos não se encontravam, há muito tempo, talvez desde que tiveram a conversa acima.
Há dias, ele se vieram a encontrar e foi com efusão de velhos camaradas que se falaram.
Então, Teodoro, teu filho do cais do porto ainda continua lá?
Continua; por sinal que já é escrevente; e o teu?
Ah! Não sabes?
Que houve?
Vai receber cinquenta contos; é um herói nacional.
Homem?
Venceu o campeonato Sul-Americano de football com o team nacional. E dizer que ele não dava pra nada!”