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Teoria Marxista

Lênin: sobre a atitude do partido operário em relação à religião

O texto reproduzido nesta matéria foi escrito por Lênin em 13 de Maio de 1909

O discurso do deputado Surkov na Duma de Estado durante a discussão do orçamento do Sínodo e os debates na nossa fracção na Duma durante a discussão do projecto deste discurso, os quais publicamos adiante, levantaram uma questão extraordinariamente importante e actual precisamente neste momento(1). O interesse por tudo o que está ligado à religião abarcou indubitavelmente vastos círculos da «sociedade» e penetrou nas fileiras da intelectualidade próxima do movimento operário e também em certos círculos operários. A social-democracia tem a obrigação absoluta de apresentar uma exposição da sua atitude em relação à religião.

A social-democracia baseia toda a sua concepção do mundo no socialismo científico, isto é, no marxismo. A base filosófica do marxismo, como Marx e Engels repetidamente declararam, é o materialismo dialéctico, que assimilou inteiramente as tradições históricas do materialismo do século XVIII em França e de Feuerbach (primeira metade do século XIX) na Alemanha, um materialismo incondicionalmente ateísta, decididamente hostil a qualquer religião. Recordemos que todo o Anti-Dühring de Engels, lido no manuscrito por Marx, acusa o materialista e ateísta Dühring de inconsequência do seu materialismo, de deixar brechas à religião e à filosofia religiosa. Recordemos que, na sua obra sobre Ludwig FeuerbachEngels o censura por ele não lutar contra a religião para a aniquilar mas para a renovar, para criar uma religião nova e «elevada», etc. A religião é o ópio do povo — esta máxima de Marx é a pedra angular de toda a concepção do mundo do marxismo na questão da religião(2). Todas as religiões e igrejas actuais, todas e quaisquer organizações religiosas, são sempre encaradas pelo marxismo como órgãos da reacção burguesa que servem para defender a exploração e para entontecer a classe operária.

E ao mesmo tempo, contudo, Engels condenou repetidamente as tentativas, de pessoas que queriam ser «mais de esquerda» ou «mais revolucionárias» do que a social-democracia, de introduzir no programa do partido operário um reconhecimento explícito do ateísmo no sentido de uma declaração de guerra à religião. Em 1874, falando sobre o famoso manifesto dos fugitivos da Comuna, os blanquistas que viviam exilados em Londres, Engels trata como estupidez a sua estrepitosa proclamação de guerra à religião, afirmando que essa declaração de guerra é o melhor meio de fazer reviver o interesse pela religião e de dificultar uma real extinção da religião. Engels culpa os blanquistas de não serem capazes de compreender que só a luta de classe das massas operárias, atraindo em todos os aspectos as mais amplas camadas do proletariado para uma prática social consciente e revolucionária, está de facto em condições de libertar as massas oprimidas do jugo da religião, enquanto a proclamação da guerra à religião como tarefa política do partido operário é uma frase anarquista(3). E em 1877, no Anti-Dühring, atacando impiedosamente as mais pequenas concessões do filósofo Dühring ao idealismo e à religião, Engels condena não menos decididamente a ideia pretensamente revolucionária de Dühring de proibir a religião na sociedade socialista. Declarar semelhante guerra à religião significa, diz Engels, «ser mais bismarckista que Bismarck», isto é, repetir a estupidez da luta de Bismarck contra os clericais (a famigerada «luta pela cultura», Kulturkampf, isto é, a luta de Bismarck nos anos 70 contra o partido alemão dos católicos, o partido do «centro», por meio da perseguição policial do catolicismo). Com tal luta Bismarck só reforçou o clericalismo militante dos católicos, só prejudicou a causa da verdadeira cultura, pois empurrou para primeiro plano divisões religiosas em vez de divisões políticas, desviou a atenção de algumas camadas da classe operária e da democracia das tarefas urgentes da luta de classes e da luta revolucionária para o mais superficial e falso anticlericalismo burguês. Acusando Dühring, que queria ser ultra-revolucionário, de querer repetir sob outra forma a mesma estupidez de BismarckEngels exigia do partido operário que soubesse trabalhar pacientemente para organizar e esclarecer o proletariado, o que conduziria à extinção da religião, e não lançar-se nas aventuras de uma guerra política contra a religião(4). Este ponto de vista enraizou-se profundamente na social-democracia alemã, que se pronunciou, por exemplo, pela liberdade para os jesuítas, pela sua admissão na Alemanha, pela liquidação de quaisquer medidas de luta policial contra tal ou tal religião. «Declarar a religião um assunto privado» — este célebre ponto do Programa de Erfurt (1891) consolidou a referida táctica política da social-democracia.

Esta táctica conseguiu transformar-se já numa rotina, conseguiu gerar uma nova deturpação do marxismo para o lado oposto, para o lado do oportunismo. Começou-se a interpretar a tese do Programa de Erfurt no sentido de que nós, sociais-democratas, o nosso partido considera a religião um assunto privado, que para nós, como sociais-democratas, para nós, como partido, a religião é um assunto privado. Sem entrar em polémica directa com esta concepção oportunista, nos anos 90 Engels considerou necessário manifestar-se decididamente contra ela não de uma forma polémica mas positiva. A saber: Engels fê-lo sob a forma de uma declaração, propositadamente sublinhada por ele, de que a social-democracia considera a religião um assunto privado em relação ao Estado, mas não, de modo nenhum, em relação a si própria, não em relação ao marxismo, não em relação ao partido operário(5).

Tal é a história externa das manifestações de Marx e Engels acerca da questão da religião. Para pessoas com uma atitude descuidada em relação ao marxismo, para pessoas que não sabem ou não querem pensar, esta história é um emaranhado de absurdas contradições e de vacilações do marxismo: que misturada, dizem elas, de ateísmo «consequente» e de «condescendências» para com a religião, que oscilação «sem princípios» entre a guerra r-r-revolucionária contra Deus e o desejo cobarde de «se adaptar» aos operários crentes, o medo de os assustar, etc., etc. Na literatura dos charlatães anarquistas podem encontrar-se não poucos ataques deste tipo contra o marxismo.

Mas quem seja minimamente capaz de ter uma atitude séria em relação ao marxismo, de reflectir nas suas bases filosóficas e na experiência da social-democracia internacional, verá facilmente que a táctica do marxismo em relação à religião é profundamente consequente e foi profundamente meditada por Marx e Engels, que aquilo que os diletantes ou ignorantes consideram vacilações é uma conclusão directa e inevitável do materialismo dialéctico. Seria profundamente errado pensar que a aparente «moderação» do marxismo em relação à religião se explica por assim chamadas considerações «tácticas» no sentido de querer «não assustar», etc. Pelo contrário, a linha política do marxismo está, também nesta questão, indissoluvelmente ligada às suas bases filosóficas.

O marxismo é materialismo. Como tal, ele é tão implacavelmente hostil à religião como o materialismo dos enciclopedistas(6) do século XVIII ou o materialismo de Feuerbach. Mas o materialismo dialéctico de Marx e Engels vai mais longe que os enciclopedistas e Feuerbach, aplicando a filosofia materialista ao domínio da história, ao domínio das ciências sociais. Devemos lutar contra a religião. Isto é o á-bê-cê de todo o materialismo e, por conseguinte, também do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que se deteve no á-bê-cê. O marxismo vai mais longe. Ele diz: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é preciso explicar de modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas. Não se pode limitar a luta contra a religião a uma prédica ideológica abstracta, não se pode reduzi-la a essa prédica; é preciso pôr esta luta em ligação com a prática concreta do movimento de classe dirigido para a eliminação das raízes sociais da religião. Por que é que a religião se mantém nas camadas atrasadas do proletariado urbano, em vastas camadas do semiproletariado e também na massa do campesinato? Por causa da ignorância do povo, responde o progressista burguês, o radical ou o materialista burguês. Consequentemente, abaixo a religião, viva o ateísmo, a difusão das concepções ateístas é a nossa principal tarefa. O marxista diz: não é verdade. Essa concepção é um superficial culturalismo limitado e burguês. Essa concepção explica de modo insuficientemente profundo, não de modo materialista mas idealista, as raízes da religião. Nos países capitalistas contemporâneos são raízes principalmente sociais. A opressão social das massas trabalhadoras, a sua aparente impotência completa perante as forças cegas do capitalismo, que causa todos os dias e a todas as horas aos simples trabalhadores sofrimentos mil vezes mais horríveis e martírios mil vezes mais bárbaros do que quaisquer acontecimentos extraordinários como guerras, terramotos, etc. — eis em que consiste a mais profunda raiz actual da religião. «O medo criou os deuses.» O medo da força cega do capital, que é cega porque não pode ser prevista pelas massas do povo, que a cada passo da vida do proletário e do pequeno proprietário ameaça infligir-lhe e lhe inflige uma «súbita», «inesperada», «acidental» ruína, a perdição, a sua transformação num pobre, num miserável, numa prostituta, a morte de fome — eis a raiz da religião actual que o materialista deve ter em vista em primeiro lugar e acima de tudo se não quiser permanecer um aprendiz de materialista. Nenhum livro educativo arrancará a religião de entre as massas oprimidas pelos trabalhos forçados do capitalismo, dependentes das cegas forças destruidoras do capitalismo, enquanto essas massas não aprenderem elas próprias a lutar unida, organizada, sistemática e conscientemente contra esta raiz da religião, contra o domínio do capital sob todas as formas.

Decorrerá daqui que o livro educativo contra a religião é prejudicial ou inútil? Não. O que daqui decorre não é nada disso. Daqui decorre que a propaganda ateísta da social-democracia deve ser subordinada à sua tarefa fundamental: desenvolver a luta de classe das massas exploradas contra os exploradores.

Uma pessoa que não tenha reflectido nas bases do materialismo dialéctico, isto é, da filosofia de Marx e Engels, pode não compreender (ou, pelo menos, não compreender logo) esta tese. Como é isso? Subordinar a propaganda ideológica, a prédica de certas ideias, a luta contra o inimigo da cultura e do progresso que persiste há milénios (isto é, contra a religião), à luta de classe, isto é, à luta por determinados objectivos práticos nos domínios económico e político?

Semelhante objecção pertence ao número das objecções correntes ao marxismo que testemunham uma completa incompreensão da dialéctica de Marx. A contradição que perturba aqueles que objectam desta maneira é uma contradição viva da vida viva, isto é, uma contradição dialéctica, não uma contradição verbal, inventada. Separar por uma fronteira absoluta e inultrapassável a propaganda teórica do ateísmo, isto é, a destruição das crenças religiosas em certas camadas do proletariado, e o êxito, a marcha, as condições da luta de classe destas camadas — significa raciocinar de modo não dialéctico, transformar numa fronteira absoluta aquilo que é uma fronteira móvel e relativa, significa desligar forçadamente aquilo que está indissoluvelmente ligado na realidade viva. Tomemos um exemplo. O proletariado de uma dada região e de um dado ramo da indústria divide-se, suponhamos, numa camada avançada de sociais-democratas bastante conscientes, que são evidentemente ateus, e em operários bastante atrasados, ligados ainda ao campo e ao campesinato, que acreditam em Deus, vão à igreja ou se encontram mesmo sob a influência directa do sacerdote local, que fundou, admitamos, uma associação operária cristã. Suponhamos, além disso, que a luta económica nessa localidade conduziu a uma greve. Para um marxista é obrigatório colocar o êxito do movimento grevista em primeiro plano, é obrigatório contrariar decididamente a divisão dos operários nesta luta em ateus e cristãos, lutar decididamente contra essa divisão. A propaganda ateísta pode revelar-se nessas condições inútil e prejudicial, não do ponto de vista das considerações filistinas acerca de não assustar as camadas atrasadas, acerca da perda do mandato nas eleições, etc., mas do ponto de vista do progresso real da luta de classes, que nas condições da sociedade capitalista contemporânea conduzirá cem vezes melhor os operários cristãos à social-democracia e ao ateísmo do que a mera prédica ateísta. O propagandista do ateísmo nesse momento e nessas condições apenas faria o jogo do padre e dos padres, que nada desejam tanto como substituir a divisão dos operários segundo a participação na greve pela divisão segundo a crença em Deus. Um anarquista, ao pregar a guerra contra Deus a qualquer preço, estaria de facto a ajudar os padres e a burguesia (como os anarquistas ajudam sempre de facto a burguesia). Um marxista deve ser materialista, isto é, inimigo da religião, mas um materialista dialéctico, isto é, que coloca a luta contra a religião não de modo abstracto, não no terreno da propaganda abstracta, puramente teórica, sempre igual a si própria, mas de modo concreto, no terreno da luta de classes que tem lugar de facto e que educa as massas mais e melhor que tudo. Um marxista deve saber ter em conta toda a situação concreta, encontrar sempre a fronteira entre o anarquismo e o oportunismo (esta fronteira é relativa, móvel, mutável, mas existe), não cair no «revolucionarismo» abstracto, verbal, de facto vazio, do anarquista nem no filistinismo e no oportunismo do pequeno burguês ou do intelectual liberal, que teme a luta contra a religião, esquece esta sua tarefa, se reconcilia com a crença em Deus, se guia não pelos interesses da luta de classes mas por cálculos pequenos e mesquinhos: não ofender, não afastar, não assustar, pela sapientíssima regra: «vive e deixa viver os outros», etc., etc.

É do ponto de vista mencionado que se deve resolver todas as questões parciais que dizem respeito à atitude da social-democracia em relação à religião. Por exemplo, avança-se frequentemente a questão de saber se um sacerdote pode ser membro do partido social-democrata, e habitualmente responde-se positivamente e sem quaisquer reservas a esta questão, referindo-se a experiência dos partidos sociais-democratas europeus. Mas esta experiência foi gerada não só pela aplicação da doutrina do marxismo ao movimento operário mas também pelas condições históricas particulares do Ocidente, ausentes na Rússia (falaremos adiante dessas condições), de modo que aqui uma resposta incondicionalmente positiva não é correcta. Não se pode declarar de uma vez para sempre e para todas as condições que os sacerdotes não podem ser membros do partido social-democrata, mas não se pode de uma vez para sempre estabelecer a regra contrária. Se um sacerdote se dirige a nós para um trabalho político conjunto e realiza conscienciosamente o trabalho partidário, não se manifestando contra o programa do partido, podemos aceitá-lo nas fileiras da social-democracia, porque a contradição do espírito e das bases do nosso programa com as convicções religiosas do sacerdote poderia permanecer nessas condições uma contradição pessoal que só a ele diga respeito, e uma organização política não pode submeter os seus membros a provas acerca da ausência de contradição entre as suas concepções e o programa do partido. Mas, evidentemente, semelhante caso poderia ser uma rara excepção mesmo na Europa, e na Rússia ele é pouquíssimo provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse no partido social-democrata e se pusesse a fazer neste partido, como seu trabalho principal e quase único, uma activa prédica das concepções religiosas, o partido deveria absolutamente expulsá-lo do seu seio. Nós devemos não só admitir como atrair sem falta para o partido social-democrata todos os operários que conservam a fé em Deus, somos absolutamente contra a menor afronta às suas convicções religiosas, mas atraímo-los para se educarem no espírito do nosso programa e não para lutarem activamente contra ele. Nós admitimos dentro do partido a liberdade de opinião, mas em certos limites, determinados pela liberdade de agrupamento: não somos obrigados a andar de mãos dadas com pregadores activos de concepções repudiadas pela maioria do partido.

Outro exemplo: pode-se em todas as condições condenar igualmente os membros do partido social-democrata por declararem «o socialismo é a minha religião» e por defenderem concepções correspondentes a esta declaração? Não. O desvio do marxismo (e, consequentemente, também do socialismo) é aqui indubitável, mas o significado deste desvio, o seu peso específico, por assim dizer, podem ser diferentes em situações diferentes. Uma coisa é um agitador ou uma pessoa que intervém perante a massa operária falar assim para ser mais compreensível, para começar a exposição, para ilustrar de modo mais real as suas concepções em termos mais habituais para a massa não desenvolvida. Outra coisa é um escritor começar a pregar a «construção de Deus»(7) ou um socialismo construtor de Deus (no espírito, por exemplo, dos nossos Lunatchárski e Cª). Tanto quanto no primeiro caso a condenação poderia ser desprovida de motivo e até uma deslocada restrição da liberdade do agitador, da liberdade de influência «pedagógica», assim no segundo caso a condenação do partido é necessária e obrigatória. A proposição «o socialismo é uma religião» é para uns uma forma de passar da religião para o socialismo, para outros do socialismo para a religião.

Passemos agora às condições que geraram no Ocidente a interpretação oportunista da tese: «declarar a religião um assunto privado». Naturalmente, há aqui influência de causas gerais que engendram o oportunismo em geral, como o sacrifício a vantagens momentâneas dos interesses fundamentais do movimento operário. O partido do proletariado exige do Estado que declare a religião um assunto privado, não considerando de modo nenhum «assunto privado» a questão da luta contra o ópio do povo, da luta contra as superstições religiosas, etc. Os oportunistas deturpam o assunto como se o partido social-democrata considerasse a religião um assunto privado!

Mas além da deturpação oportunista habitual (que de modo nenhum foi esclarecida no debate realizado pela nossa fracção na Duma ao discutir-se a intervenção sobre a religião) existem condições históricas particulares que provocaram a actual indiferença excessiva, se assim nos podemos exprimir, das sociais-democracias europeias em relação à questão da religião. São condições de dois tipos. Em primeiro lugar, a tarefa da luta contra a religião é uma tarefa histórica da burguesia revolucionária, e no Ocidente esta tarefa foi realizada (ou começada a realizar) pela democracia burguesa na época das suas revoluções ou dos seus ataques contra o feudalismo e o medievalismo. Tanto em França como na Alemanha há uma tradição de guerra burguesa contra a religião, começada muito antes do socialismo (os enciclopedistas, Feuerbach). Na Rússia, de acordo com as condições da nossa revolução democrática burguesa, também esta tarefa recai quase inteiramente sobre os ombros do proletariado. A democracia pequeno-burguesa (populista) fez neste aspecto no nosso país não demasiado muito (como pensam os novos democratas-constitucionalistas cem-negristas ou membros das centúrias negras democratas-constitucionalistas da Vékhi(8)) mas demasiado pouco em comparação com a Europa.

Por outro lado, a tradição de guerra burguesa contra a religião veio a criar na Europa uma deturpação especificamente burguesa desta guerra pelo anarquismo, o qual se encontra, como já há muito e repetidamente esclareceram os marxistas, no terreno da concepção do mundo burguesa, apesar de toda a «fúria» dos seus ataques contra a burguesia. Os anarquistas e os blanquistas nos países latinos, Most (que foi, a propósito, discípulo de Dühring) e Cª na Alemanha, os anarquistas nos anos 80 na Áustria, levaram até ao nec plus ultra(9) a frase revolucionária na guerra contra a religião. Não é de espantar que agora os sociais-democratas europeus caiam no extremo oposto aos anarquistas. Isto é compreensível e, em certa medida, natural, mas para nós, sociais-democratas russos, não é bom esquecer as condições históricas particulares do Ocidente.

Em segundo lugar, no Ocidente, depois da conclusão das revoluções nacionais burguesas, depois da introdução de uma liberdade de consciência mais ou menos completa, a questão da luta democrática contra a religião fora já historicamente tão relegada para segundo plano pela luta da democracia burguesa contra o socialismo que os governos burgueses tentaram conscientemente desviar a atenção das massas do socialismo através da organização de uma «campanha» pretensamente liberal contra o clericalismo. Tal foi o carácter tanto da Kulturkampf na Alemanha como da luta dos republicanos burgueses de França contra o clericalismo. O anticlericalismo burguês como meio de desviar a atenção das massas operárias do socialismo, foi isso o que no Ocidente precedeu a difusão entre os sociais-democratas da sua actual «indiferença» em relação à luta contra a religião. E mais uma vez isto é compreensível e natural, porque os sociais-democratas tiveram de contrapor ao anticlericalismo burguês e bismarckiano precisamente a subordinação da luta contra a religião à luta pelo socialismo.

Na Rússia as condições são completamente diferentes. O proletariado é o guia da nossa revolução democrática burguesa. O seu partido deve ser o guia ideológico na luta contra todo o medievalismo, incluindo tanto contra a velha religião oficial como contra todas as tentativas de a renovar ou de lhe dar uma fundamentação nova ou diferente, etc. Por isso, se Engels corrigiu de modo relativamente suave os sociais-democratas oportunistas alemães que substituíam a reivindicação do partido operário de que o Estado declarasse a religião um assunto privado pela declaração da religião como assunto privado para os próprios sociais-democratas e para o partido social-democrata, é evidente que a imitação pelos oportunistas russos desta deturpação alemã mereceria uma condenação cem vezes mais viva de Engels.

Declarando da tribuna da Duma que a religião é o ópio do povo, a nossa fracção actuou de modo perfeitamente correcto e criou dessa maneira um precedente que deve servir de base a todas as intervenções dos sociais-democratas russos sobre a questão da religião. Devia-se ter ido mais longe, desenvolvendo ainda mais pormenorizadamente as conclusões ateístas? Pensamos que não. Isso poderia ter comportado a ameaça de exagero da luta contra a religião por parte do partido político do proletariado; isso poderia ter conduzido ao apagamento da linha divisória entre a luta burguesa e socialista contra a religião. A primeira coisa que a fracção social-democrata devia fazer na Duma cem-negrista foi feita com honra.

A segunda coisa — e talvez a mais importante para os sociais-democratas —, o esclarecimento do papel de classe da igreja e do clero no apoio ao governo cem-negrista e à burguesia na sua luta contra a classe operária, foi igualmente feita com honra. Naturalmente, sobre este tema pode-se ainda dizer muitíssimo, e as intervenções posteriores dos sociais-democratas saberão completar o discurso do camarada Surkov, mas no entanto o seu discurso foi excelente e a sua difusão por todas as organizações partidárias é um dever directo do nosso partido.

Terceira coisa — devia-se explicar do modo mais circunstanciado o sentido correcto da proposição tão frequentemente deturpada pelos oportunistas alemães: «declarar a religião um assunto privado». O camarada Surkov infelizmente não o fez. Isto é tanto mais de lamentar quanto na actividade anterior da fracção foi já admitido nesta questão o erro do camarada Beloússov(10), oportunamente apontado pelo Proletári. Os debates na fracção mostram que a discussão sobre o ateísmo lhe fez esquecer a questão da forma correcta de colocar a célebre reivindicação de que a religião seja declarada assunto privado. Não culparemos deste erro de toda a fracção apenas o camarada Surkov. Mais ainda. Reconhecemos francamente que aqui há culpa de todo o partido, que não esclareceu suficientemente esta questão, que não preparou suficientemente a consciência dos sociais-democratas para o significado da observação de Engels dirigida aos oportunistas alemães. Os debates na fracção demonstram que se tratou precisamente de uma compreensão pouco clara da questão e de modo nenhum de falta de desejo de ter em conta a doutrina de Marx, e estamos certos de que este erro será corrigido nas intervenções posteriores da fracção.

No geral, repetimos, o discurso do camarada Surkov é excelente e deve ser difundido por todas as organizações do partido. A fracção demonstrou com o exame deste discurso o cumprimento plenamente consciencioso do seu dever social-democrata. Resta desejar que as correspondências sobre os debates dentro da fracção sejam publicadas mais frequentemente na imprensa do partido para aproximar a fracção do partido, para dar a conhecer ao partido o árduo trabalho interno realizado pela fracção, para estabelecer a unidade ideológica na actividade do partido e da fracção.

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