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Juca Simonard

Editor da revista Na Zona do Agrião e redator do Dossiê Causa Operária

Perfil cultural

Ismael Silva, o fundador das escolas de samba

A importância de Ismael Silva para o samba e a música popular brasileiro é tão grande quanto o esquecimento a que é submetido

O samba moderno surgiu no Rio de Janeiro e tem uma história ligada umbilicalmente ao nascimento das escolas de samba na então capital do Brasil. O cantor e compositor Ismael Silva, cujo aniversário de morte completou 45 anos em março desse ano, foi uma das principais figuras do gênero musical.

De origem proletária, filho de cozinheira e lavadeira, Ismael foi responsável por o que é considerada a primeira escola de samba da história: a Deixa Falar, fundada em 1928. Sua família, oriunda de Niterói, mudou-se para o centro do Rio após o falecimento do pai. Foi na primeira década do século XX e Ismael tinha apenas três anos de idade. 

Naquele momento, a capital da ainda jovem República brasileira era um centro cultural efervescente. Ao final do século XIX, surgiam gêneros musicais tipicamente brasileiros, como o choro, que misturava a música popular nacional com a música clássica europeia. Na transição de um século para outro, o carnaval brasileiro assumiu características próprias e se tornava um fenômeno de massas, com a influência direta da cultura mestiça do país. Surgiam assim os grandes cordões carnavalescos, dentre os quais o Ameno Resedá — considerado pioneiro das escolas de samba e cuja música era dirigida por Sinhô, o fundador do samba moderno.

A fundação desse tipo musical aparecia, portanto, ao mesmo tempo em que se desenvolvia o carnaval carioca. O samba nascia das marchinhas carnavalescas, misturadas com choro, música sertaneja, o folclore nordestino e as batucadas africanas mantidas — mas também adaptadas e desenvolvidas — pelo negro brasileiro, para formar um gênero que afirmaria a identidade nacional. Esse processo acontecia simultaneamente ao desenvolvimento da classe operária brasileira, que passaria a ter um papel ativo na situação política brasileira no início do século XX.

Ismael morava no bairro Estácio de Sá, no centro da cidade, e assim conviveu no meio dessa ebulição cultural desde a infância. Logo cedo, frequentou as rodas de samba da época e passou a compor. Sua primeira composição gravada foi “Me faz carinhos”, em 1925, o que permitiu sua aproximação com Francisco Alves, principal intérprete do samba do período. Com ele e o pianista Nilton Bastos, Ismael formou o trio Bambas do Estácio, responsável por um dos sambas mais conhecidos e gravados da história: “Se você jurar”.

A composição é um partido-alto, que consiste num dos primeiros tipos de samba, onde se vê a influência da improvisação das rodas de batuques. O estilo consiste em um verso principal repetido diversas vezes entre versos improvisados, que pela necessidade das gravações acabaram ficando estruturados em formas fixas.

Se você jurar que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar

Muito tenho sofrido
Por minha lealdade
Agora estou sabido
Não vou atrás de amizade

A minha vida é boa
Não tenho em que pensar
Por uma coisa à toa
Não vou me regenerar

Se você jurar que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar

A mulher é um jogo
Difícil de acertar
E o homem como um bobo
Não se cansa de jogar

O que eu posso fazer
É se você jurar
Arriscar a perder
Ou desta vez então ganhar

Se você jurar que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar

Com a morte de Nilton, em 1931, os Bambas do Estácio ficariam desestruturados permitindo o início da principal parceria de Ismael em sua carreira, com Noel Rosa. O “Poeta da Vila”, como era chamado em alusão ao bairro em que morava, Vila Isabel, foi talvez o mais importante compositor das décadas de 1920 e 1930. Ao todo, a dupla realizou dezoito composições, tornando Ismael o principal parceiro da curta carreira de Noel, morto prematuramente em 1937, aos 26 anos. 

A primeira escola de samba

Na evolução dos cordões carnavalescos para as modernas escolas de samba ao longo da década de 1920, Ismael foi uma figura central. A Deixa Falar, de cores vermelha e branca, em homenagem ao clube de futebol America Football Club, foi fundada por ele 1928 e foi a entidade criadora do termo escola de samba, fundamentando as bases para as posteriores — ainda que o cordão Ameno Resedá tenha sido pioneiro em diversas dessas características.

A “escola de samba” teria como objetivo formar “professores” para divulgar e aprimorar o novo gênero, o samba urbano, além de ter um trabalho social e cultural constante que não se limitasse ao período do carnaval. Em um período em que ainda muitos cordões tocavam marchinhas, ranchos e até valsas e outros estilos, a escola fundada por Ismael foi a principal a ter como base o samba.

Todavia, a Deixa Falar, que surgiu no Largo do Estácio, durou pouco e nunca participou dos concursos carnavalescos oficiais, que formariam os atuais desfiles. A escola desfilava nas ruas e praças do Rio de Janeiro, além de atuar para desenvolver o movimento das escolas que surgiam, como Estação Primeira de Mangueira e o Conjunto Oswaldo Cruz (Portela). Foi esse movimento geral que permitiu o primeiro concurso oficial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, organizado pelo jornal Mundo Sportivo, do jornalista Mário Filho, em 1932.

Uma das principais figuras do samba na época, o pai-de-santo e sambista Zé Espinguela organizou em sua casa, em 1929, no Engenho de Dentro, o primeiro concurso para definir o melhor conjunto de sambistas. Participaram a Estação Primeira, o Conjunto Oswaldo Cruz e a Deixa Falar, que acabou desclassificada por usar instrumentos de sopro — algo comum no samba urbano moderno. Mesmo sem a repetição do concurso de Zé Espinguela nos anos seguintes, o samba moderno se espalhou pelo Rio de Janeiro com a profusão de diversos grupos que passaram a se autodenominar de “escola de samba”.

No entanto, em 1931, a Deixa Falar desfilou entre os ranchos carnavalescos no concurso organizado pelo Jornal do Brasil, com o enredo “O Paraíso de Dante”. No ano seguinte, optou por se manter no concurso — dessa vez com o enredo “A Primavera e a Revolução de Outubro” —, sem participar da competição das escolas de samba organizada pelo Mundo Sportivo.

Em 1933, diante de uma divisão na direção da escola, a Deixa Falar foi extinta e se fundiu ao bloco União das Cores, formando o União do Estácio de Sá. Ismael, no entanto, não participou da nova escola de samba e nunca mais se associou a nenhuma organização carnavalesca.

Entre os sambistas da Deixa Falar estava Bide (famoso por sua parceira com Marçal, outro bamba de Estácio de Sá), que participou da gravação de “Na Pavuna”, em que, pela primeira vez, apareciam gravados instrumentos típicos das escolas, introduzindo ao samba a cuíca e o surdo.

A grande importância da Deixa Falar no samba moderno foi resultado de uma forma específica de se tocar a música no bairro do Estácio. “Carlos Sandroni cunhou este modo de fazer samba de ‘Paradigma do Estácio’, estilo que se popularizaria em todo Rio de Janeiro ao longo da década de 30 e balizaria o samba a partir de então. A principal característica do samba do Estácio era a batida do tamborim conhecida hoje como ‘telecoteco’”, destaca exposição do Museu Afro Brasil sobre Ismael Silva. 

Parceiria com Noel e renascimento

Após se distanciar das escolas de samba, Ismael focou em composições a serem gravadas e tocadas no rádio, que se tornava o principal pilar da indústria fonográfica na década de 1930. Foi quando começou sua parceria com Noel Rosa — cujas canções eram interpretadas por Francisco Alves, mas também por outro dos principais cantores da época, Mário Reis. São desta época as famosas composições “Pra me livrar do mal”, “Ando cismado” e “Uma jura que eu fiz”.

(Para me livrar do mal)

Estou vivendo com você
Num martírio sem igual
Vou largar você de mão
Com razão
Para me livrar do mal

Supliquei humildemente
Pra você endireitar
Mas agora, infelizmente
Nosso amor vai se acabar
Vou embora afinal
Você vai saber porque
É pra me livrar do mal
Que eu fujo de você

Estou vivendo com você
Num martírio sem igual
Vou largar você de mão
Com razão
Para me livrar do mal

Você teve a minha ajuda
Sem pensar em trabalhar
Quem se zanga é que se muda
Eu já tenho onde morar
Nunca mais você encontra
Quem lhe faça o bem que eu fiz
Levei muito golpe contra
Passe bem, seja feliz

(Ando cismado)

Mulher, eu ando cismado
Que me enganei com você
Se algum dia não ficar mais a seu lado
Não precisa perguntar por quê

A mentira é fatal
Creio que não é por mal
Que a mulher nos faz descrer
Mas se é realidade
Sua grande falsidade
Eu hei de ver você sofrer

Eu cismado espero agora
Ver você a qualquer hora
Dando ao outro o coração
Quando chegar esse dia
Deixo sua companhia
Sem explicar por que razão

(Uma jura que fiz)

Não tenho amor
Nem posso amar
Pra não quebrar
Uma jura que fiz
E pra não ter
Em quem pensar
Eu vivo só
E sou muito feliz

Aquela que eu mais amava
Só pensava em me trair
Quando eu menos esperava
Partiu sem se despedir
Essa mesma criatura
Quis voltar mas eu não quis
E hoje cumprindo a jura
Vivo só e sou feliz

Um amor pra ser traído
Só depende da vontade
Mas existe amor fingido
Que nos traz felicidade
A mulher vive mudando
De ideia e de ação
E o homem vai penando
Sem mudar de opinião

A morte de Noel, em 1937, culminou com um momento complexo na vida de Ismael, se afastando do samba e dos bambas do Estácio. Ele foi preso em uma discussão de bar após atirar em um homem e, condenado a cinco anos de prisão, cumpriu dois anos de reclusão devido ao bom comportamento. Quando saiu da prisão, passou por graves dificuldades financeiras durante um longo tempo. Já na década de 1940, o samba era uma grande indústria na rádio e muitos dos precursores e sambistas tradicionais foram deixados de lado em detrimento do lucro das grandes gravadoras.

Seu “renascimento” entre os sambistas surgiu na década de 1950, quando Alcides Gerardi fez sucesso ao gravar seu samba Antonico:

Oh, Antonico
Vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim

Até muamba já fizeram pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê-lo muito bem, se Deus quiser
E agradeço pelo que você fizer, meu senhor

Com o sucesso da gravação, Ismael conseguiu sair da crise financeira. Em 1954, ele participou do Primeiro Festival da Velha Guarda, em São Paulo, ao lado de outros bambas. O evento foi organizado por Almirante, cantor, radialista e compositor conhecido como “a mais alta patente do Rádio” durante a ‘Era de Ouro’ do rádio no Brasil. Em seguida, realizou diversos espetáculos e conseguiu lançar seus dois primeiros discos: “O samba na voz do sambista” (1955) e “Ismael canta Ismael” (1956).

A década de 1950 e o início dos anos 1960, até o golpe militar de 1964, marcam o fortalecimento do nacionalismo brasileiro — período em que o samba também teve um importante impulso. Na década de 1960, entre os sambistas, ganharam popularidade não apenas tradicionais compositores, como o próprio Ismael, mas também Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, entre outros, como também surgiria uma nova geração que se distanciaria do rádio para retomar a tradição do samba-enredo e do partido-alto, como Martinho da Vila e Paulinho da Viola.

Nesse período, Ismael frequentou com outros sambistas as reuniões e apresentações no Zicartola — boteco do amigo Cartola com sua esposa, dona Zica. Participou ainda do espetáculo “O samba pede passagem”, realizado no Teatro Opinião — importante elemento da vanguarda artística do período. Suas músicas para o espetáculo serão em seguidas gravadas em disco em 1966.

Prestigiado, recebeu diversas homenagens na década de 1960, em programas de televisão e exposições em museus. Na década de 1970, Ricardo Cravo Albin escreveu o espetáculo musical “Se você jurar”, contando a trajetória do sambista Ismael Silva e da cantora Carmen Costa — principal intérprete da composição. Em consequência do espetáculo, Ismael lançaria um LP homônimo, seu quarto e último disco, em 1973. Idoso, morreu em março de 1978, aos setenta e três anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante.

* Em contribuição para a Breton

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