A cada dia, fica mais clara a superficialidade da política identitária e sua incapacidade de enfrentar os problemas reais da sociedade. Na semana passada, o noticiário aparecia repleto de chacinas em favelas, cujos moradores viraram alvo de “operações policiais” de retaliação, e o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, um expoente da luta contra o racismo “estrutural”, teve reação tímida diante do ocorrido, beirando a omissão. Nesta semana, o vazio dessa política apareceu em uma situação menos dramática, a morte da atriz Aracy Balabanian, aos 83 anos de idade, em decorrência de um câncer no pulmão.
A imprensa da burguesia, que se apresenta como o suprassumo da modernidade – em defesa do feminismo, do ambientalismo, do combate às fake news, da luta contra o racismo e a homofobia –, enfatizou nos obituários da atriz o fato de ela ter feito aborto, não ter casado e não ter tido filhos.
A Folha, no seu proverbial tom de fofoca, trouxe o título “Atriz fez aborto e não quis casar”, depois ligeiramente modificado por causa da má repercussão. Saía a história do aborto, mas continuava a necessidade de explicar por que a atriz não teve filhos (“Aracy Balabanian explicou em biografia que sua carreira não comportava filhos”) e de chamar a atenção para o fato inusitado de, sendo mulher, não ter envergado o vestido de noiva (“Uma das mais relevantes atrizes da TV brasileira, morta aos 83 anos, preferiu não se casar”). O Globo foi na linha do “não teve filhos”.
Talvez o que espante a garotada identitária alojada nas redações de jornal é que uma mulher que, pela idade, poderia ser sua avó (e que nunca apareceu fazendo discurso feminista) já tomasse conta de seu nariz há muito tempo. Quis dedicar-se à carreira, não quis casar e, ainda por cima, não quis filhos e até aborto fez. Muito mais feminista que qualquer Barbie identitária, cujo feminismo não vai além de uma foto no Instagram ou de umas frases de efeito (em geral copiadas da Simone de Beauvoir,nem sempre lida) publicadas nas redes sociais.
Este que vos fala já ouviu de viva voz universitários da esquerda pequeno-burguesa se referirem às “donas de casa dos anos 80”, sendo esse marco temporal, anterior ao seu nascimento, a era do obscurantismo (!). Dos anos 60, então, nunca ouviram falar. Está faltando informação e sobrando sabujice à pauta do imperialismo, que outra coisa não é esse tal de identitarismo ou cultura “woke”.
Essa política, cujo foco é a juventude, tem prestado um grande desserviço à tomada de consciência da vida real e de seus problemas. Canaliza a energia e a força transformadora dos jovens para um conformismo vestido de cor-de-rosa. Os jovens das misteriosas décadas de 60, 70 e 80 queriam, juntos, mudar o mundo; os de hoje, quando não se contentam em tirar foto dentro da caixa da boneca americana para vender uma imagem nas redes sociais, querem apenas vagamente afirmar a própria individualidade, que também não deixa de ser um produto à venda no mercado da opinião. Tá na hora de cair na real.