Recentemente, foi anunciado que a lista de livros de leitura obrigatória para os candidatos que pleiteiam uma vaga na USP será composta apenas de escritoras durante um período de três anos (2026-2029). A medida soa como uma espécie de ação afirmativa, que tem o DNA da política identitária, em geral muito bem-aceita nas universidades. Mesmo assim, gerou confusão entre um grupo de professores de literatura da USP e de críticos literários, que publicaram uma carta aberta de contestação ao critério de seleção das obras.
Os signatários da carta, por óbvio, não tecem críticas diretas ao viés identitário da ação, mas chegam a questioná-lo pela base: afinal, dessas nove autoras, três são negras e seis são brancas – nenhuma “LGBTQIAPN+” e nenhuma oriunda dos povos originários. O critério de “identidade” é sempre problemático, porque sempre vai faltar algum “representante”, mas pior que isso é usá-lo para substituir o cânone. Ao fazer isso, o pressuposto é que os autores consagrados não têm mérito em si, tendo obtido reconhecimento apenas por fatores externos à sua obra – por, em tese, serem parte do “pacto da branquitude”. Nem Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto parecem escapar desse odioso pacto.
De outro lado, estão os críticos dos missivistas, estes agora acusados de serem homens, brancos, heterossexuais ou o que seja. Esse debate faz lembrar o que há não muito tempo envolveu o incensadíssimo Itamar Vieira Júnior, autor do best-seller “Torto Arado”. Ao lançar o segundo livro – na expectativa de obter o mesmo sucesso de vendas que a propaganda garantiu ao primeiro –, o autor se deparou com o texto de uma crítica literária que se atreveu a fazer o seu trabalho, ou seja, analisar a obra e… apontar alguns aspectos que considerou problemáticos. Ela recebeu queixa dele na caixa de mensagens, depois foi bloqueada nas redes sociais dele e, para não ficar barato, foi alvo da reprovação dele em coluna de jornal, na qual a acusava, basicamente, de ser branca. Como uma pessoa branca poderia fazer a crítica de um autor negro sem incorrer no racismo estrutural?
Como temos visto, o ataque ao cânone é uma das metas dessa política. Sob a justificativa de fazer “justiça histórica”, vão destruindo as bases da cultura. Os autores do cânone têm sua biografia escrutinada em busca de algum ato desabonador, uma revelação de misoginia ou de racismo, algum pretexto para que saiam de cena. Vale dizer que autoras como Clarice Lispector, Cecília Meireles e Raquel de Queiroz, entre outras, sempre estiveram nessas misóginas listas de vestibulares.
O que gera certo incômodo não é, por certo, a presença das mulheres, mas a exclusão de autores que são parte de nossa referência cultural, marcadamente Machado de Assis, que, aliás, era negro – ou, como se dizia antigamente, mulato (miscigenação de branco com negro). Os vestibulares, como sabemos, influenciam o ensino médio, que acaba se voltando para o que os exames pedem. Excluir nossos grandes autores, substituindo-os por outros, colhidos segundo um vago critério de identidade, pode não ser o melhor estímulo a que estudantes conheçam a própria cultura, já tão infestada de superficialidades importadas dos EUA.