Ontem, acordamos com a notícia de que a resolução feita pelo Brasil na ONU para administrar o conflito na Faixa de Gaza foi rejeitada pelo Conselho de Segurança do órgão. A diplomacia brasileira nem mesmo pediu o cessar-fogo, como tinha feito a Rússia, contentando-se em propor “pausas humanitárias” para que pudessem entrar na região devastada remédios, alimentos, água. Mesmo assim, os Estados Unidos vetaram a resolução, sob a alegação de que faltou no texto explicitar o suposto direito de Israel de reagir à ofensiva do Hamas. Enquanto isso, Israel exercia o seu “direito” de bombardear um hospital, deixando só ali um saldo de cerca de mil mortos, entre doentes, feridos, médicos, enfermeiros e civis que se abrigavam no local.
À indignação internacional ante o covarde ataque, a ela Israel responde com a acusação de que o míssil que atingiu o hospital teria sido disparado pelo grupo Jihad Islâmica. Convenhamos que é bem difícil acreditar nisso, pois o suposto direito que Israel teria de “reagir” vem sendo defendido pelos Estados Unidos, que tem exercido seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU a propostas que deixem de reconhecê-lo explicitamente.
Mesmo diante das imagens divulgadas em tempo real, a imprensa da burguesia, que é refém da agenda imperialista, faz um grande esforço para defender a posição de Israel no conflito. Usa não só seus articulistas e editorialistas como o próprio noticiário enviesado. A confusão proposital entre sionismo e judaísmo, bem como as acusações de antissemitismo desferidas a todos os que defendem os palestinos, é parte da estratégia.
Propaga-se a ideia de que ser contrário à existência do Estado de Israel é ser “antissemita”, o que transformaria uma posição política em “discurso de ódio”, seja lá o que isso for. Ato contínuo, como a liberdade de expressão vem sendo cerceada até pela Justiça – em nome dos bons modos da burguesia civilizada e dos identitários –, promove-se a autocensura.
Como a população fica perplexa ante as imagens, a imprensa oferece na bandeja o posicionamento “politicamente correto” a ser endossado: urge ser contrário à violência de ambos os lados, que provoca a morte de inocentes. Isso é a pura expressão do senso comum, pois ninguém quer a guerra e a destruição. Qual seria então a solução para o problema? Nem Guilherme Boulos, nem Luciano Huck tocam no assunto. O primeiro, para evitar o silêncio dos covardes, afirmou sua simpatia pelo povo palestino e a condenação da morte de civis de “ambos os lados”. O segundo, preocupado com a turma dos riquinhos da “rave” descolada em Israel, criticou a diplomacia brasileira.
O argumento da “violência de ambos os lados”, que cria uma falsa equivalência entre forças desiguais, costuma ser brandido pelo lado opressor, que tenta, dessa forma, justificar-se. Aqui mesmo, no Brasil, já vimos isso em discurso de Simone Tebet no Parlamento, em 2015, no qual ela, praticamente, justificava o assassinato de indígenas, armados com arco e flecha, por capangas de latifundiários. Esse discurso busca ocultar o fato de que oprimidos são oprimidos pela força desmesurada do opressor. Ser contrário à reação do oprimido é, no mínimo, ser hipócrita.
Ao chamar o conflito de “guerra entre Israel e o Hamas”, expressão disseminada em toda a imprensa nacional (com direito a referência na Wikipédia), oferece-se à população o direito a um pouco de simpatia pelo povo palestino, apresentado paradoxalmente como vítima do Hamas, que, na terminologia corrente, é um grupo “terrorista”. Israel estaria, então, enfrentando os cruéis terroristas do Hamas, responsáveis pelo banho de sangue na região.
Nessa versão, porém, omite-se o principal: por meio do Hamas, o povo palestino está exercendo o seu direito de reagir à violência diuturna do Estado de Israel. Não sendo um Estado constituído, a Palestina não tem um exército regular, dado esse que não deve ser esquecido. Além disso, desde a sua origem, Israel usurpou o território palestino expulsando o povo que lá vivia e, de lá para cá, vem ampliando seu poder sobre a região com um poderoso arsenal bélico e o apoio incondicional dos Estados Unidos. Quem tiver a curiosidade de observar os mapas da região desde antes de 1948 até agora vai entender de que se trata.
O jornalista judeu Breno Altman, do canal de YouTube Opera Mundi, vem fazendo uma série de vídeos em que explica em detalhes a situação de opressão do Estado de Israel sobre a Palestina. A plataforma, em represália, desmonetizou o canal, e, ao mesmo tempo, sionistas o têm ameaçado pelas redes sociais. Importa lembrar que muitos judeus, inclusive os ortodoxos, são contrários à existência do Estado de Israel, um “Estado judeu”.
Como se vê, sobrepõe-se ao conflito a guerra pelo controle da informação. Apesar do saldo de mortos, a ação do Hamas obrigou o mundo a olhar para a região e, mesmo com todo o aparato de censura e de mistificação da informação, as notícias circulam pela internet numa multiplicidade de vozes que desafiam as estratégias usuais da imprensa caudatária do imperialismo. A mobilização popular é que pode fazer a diferença no enfrentamento dessa grave questão. Não por outro motivo, a França de Emannuel Macron, onde vive grande contingente de pessoas de origem árabe, proibiu manifestações pró-Palestina. O feitiço, no entanto, pode virar contra o feiticeiro.