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Censurar para “proteger” as crianças?

Leandro Karnal defende revisar obras clássicas infantis para garantir o desenvolvimento das crianças. A farsa que encobre uma política ditatorial

No último domingo, dia 22 de outubro, Leandro Karnal publicou coluna para O Estado de S. Paulo intitulada:  “Ao editar um texto literário, posso manter racismos, misoginias, homofobias?” Ao longo da mesma, o historiador propõe a revisão de obras artísticas passadas em nome da moral e dos bons costumes ou, nas palavras do mesmo, “valores”, “caráter”, “ética”, especialmente no que diz respeito às crianças. Tal defesa do revisionismo que é, inclusive, histórico, visto que as obras e a produção da humanidade são registros da história do desenvolvimento humano, é mascarado. Vamos aos argumentos.

“Muitos livros possuem termos e julgamentos que ficaram inadequados para a nossa sensibilidade. Autores que vão de Agatha Christie a Monteiro Lobato sofrem contestações; surgem edições adaptadas. Sempre precisamos pensar sobre essa necessidade de mudar o passado.”

Agatha Christie e Monteiro Lobato estão mortos há muito tempo. Que contestação, de fato, existe? Se as obras de tais pessoas não são narradas como se considera adequado hoje, qual o problema? Devemos acabar com toda a arte passada que remeta a qualquer ofensa de tipo moral? Talvez Karnal queira complementar sua proposta para a literatura com o apagamento de toda nudez nos quadros dos museus. Logo em seguida o colunista já se defende, ainda no início do texto, o que demonstra saber que a tese defendida é profundamente reacionária e antipopular.

“Minha primeira análise é como historiador. Exclusivamente com os óculos de especialista na área, nada posso alterar em um documento. Pelo contrário […] Sim, posso fazer notas e explicações ao pé da página, jamais alterar dados ou termos. Esse é o campo da História. Documentos expõem um mundo que desapareceu; mudá-los mostra a força do presente, mas não do passado.”

Ora, mas a arte é uma forma de se conectar ao passado. Que diria o autor dos museus de artes? A literatura não é diferente, é um registro cultural de um momento histórico. Ou seja, para todos os efeitos, um documento histórico. O que diferiria um manuscrito de Dom Quixote de um manuscrito de Monteiro Lobato? Vamos revisar Cervantes também? Dante? Até onde vai essa medida?

Adaptações ocorrem naturalmente, por diversos motivos, no entanto, a política deliberada de buscar ocultar o passado é uma política que nega ao ser humano o acesso à sua história, à história da sociedade, à cultura. As pessoas não são todas historiadoras, e acessam a história por diferentes meios, sendo a cultura, e a literatura, um deles. Leandro Karnal, enquanto historiador, busca ironicamente negar e apagar a história.

“Por fim, temos uma situação distinta: livros para crianças. O teor das histórias infantis muda muito. Quase nenhuma mãe leria com tranquilidade uma narrativa original dos Irmãos Grimm para os rebentos dormirem. […] Para o aprendizado inicial de valores, eu sou favorável a histórias muito adaptadas ou produzidas a partir das nossas crenças atuais. […] Quando entrego um texto a uma criança, estou colaborando para formar caráter e ética. É difícil para a mente infantil elaborar perspectiva histórica e distinguir penumbras e luzes.”

Uma criança é incapaz de crítica? Não é tarefa dos adultos garantir que ela elabore uma perspectiva histórica? Obras passadas não podem ser apresentadas criticamente? Mais que isso, as crianças ficam sob a tutela de algum adulto, o filtro já está estabelecido a partir da pessoa que está responsável por ela. Por que então esse chamamento à censura?

“Ouvi de um senhor a seguinte ideia: ‘Na nossa época, as histórias eram assim, e a gente sobreviveu’. Sim, sobrevivemos e moldamos um mundo racista, misógino e excludente. A violência contra animais nascia da canção Atirei o Pau no Gato? Não apenas, mas também. Empatia com doentes? Eu me lembro de uma música que indicava bater em alguém já machucado: ‘Samba Lelê tá doente / Tá com a cabeça quebrada / Samba Lelê precisava / É de uma boa lambada’. Como se vê, a inocente letra não poderia ser um guia de cuidados para traumatismos cranianos.”

Leandro Karnal adentra o ridículo na sequencia. Atirei o Pau no Gato seria uma causa da violência contra animais e Samba Lelê promoveria a falta de empatia com pessoas doentes. Chegamos ao nível do escatológico, e qualquer pessoa adulta o comprova. Quem atira um pau no gato por causa da música? Algo simplesmente absurdo. Não haveria gato vivo no Brasil se, na etapa de formação da moral e dos bons costumes uma quantidade gigantesca de pessoas ouviu essa música, e a partir dela se tornassem violentas para com os pequenos felinos.

Um ponto, porém, pode acabar escapando pela leviandade com que é apresentado: “moldamos um mundo racista, misógino e excludente”. Quem moldamos? Karnal busca atribuir esse feito a uma generalidade, todas as pessoas seriam culpadas. Tal raciocínio, contudo, busca encobrir o fato de que a maioria da população não molda nada em termos de funcionamento da sociedade. Quem o faz é a burguesia, não os trabalhadores. Karnal busca retirar a responsabilidade pela desgraça que é o capitalismo em seu estado de extrema decadência e depositá-la sobre os trabalhadores.

“De novo e de forma incisiva: o racismo, a violência contra a mulher, a crueldade com animais e a homofobia não nasceram de uma música. Apesar disso, como nossa sociedade ostentava esses graves desvios éticos, sem vergonha visível, isso era um sistema que passava por tudo: da educação aos jogos infantis.”

Após as declarações absurdas, obviamente falsas, o autor se desmente, e renova a ofensiva contra a população no geral, em abstrato. O problema é a ostentação desses “graves desvios éticos”. Não as instituições que massacram o negro e o renegam à situação de cidadão de segunda classe, mas os desvios éticos, não a polícia assassina e o judiciário burguês, mas “aquilo que moldamos”, todos nós. Uma farsa.

“Alguns dirão que isso é uma bobagem politicamente correta. Eu argumentaria que é cumprir dispositivo constitucional, especialmente os valores do artigo quinto da Carta Magna de 1988. Crianças nascem sem valores éticos definidos. O esforço dos pais, professores e de toda a sociedade irá moldando o caráter dos pequenos lentamente: tolerância ativa, respeito à diferença, empatia, solidariedade, etc. É estranho exigir obediência a mim como autoridade paterna (ou professor) e relativizar a obediência à Constituição.”

Sem onde recorrer com argumentos tão fajutos, Leandro Karnal apresenta então que a censura estaria prevista na Constituição Federal. E as condições de vida das crianças? Não moldam a visão de mundo delas? E a privação de direitos elementares? E a opressão policial cotidiana? Não. O problema são os contos clássicos, as fábulas e as cantigas de ninar. Uma fraude total, para defender a burguesia. Uma farsa, ainda assim, é sucedida por outra.

“Adultos formados podem ler tudo. Crianças em formação devem ser expostas a questões compatíveis com sua idade. Não posso dar feijoada com torresmo a um bebê. Não é recomendável uma caipirinha a uma criança de cinco anos. Se o estômago e o intestino devem ser respeitados nos limites de cada idade, o cérebro também merece cuidados com gradação de experiências.”

E o cérebro de todas as crianças, para Karnal, deve obedecer ao que ele acha correto. Não é possível debater com as crianças? Apresentar a elas como a sociedade funciona? Ora, é isso que O Estado de S. Paulo, Leandro Karnal, e seus mestres imperialistas querem. Supõe-se uma incapacidade de crítica anterior, para então proibi-la completamente. A educação e a formação das crianças – e sabe-se lá de quais crianças ele fala – deveria ser hermética, totalmente controlada por um poder que revisa tudo, e impede aquilo que atente contra a moral e os bons costumes de se propagar. Um poder que dita, de maneira dura, como todos devem pensar e agir. Espera aí, já ouvimos esse discurso em algum lugar, não?

“O que for destinado à educação de crianças deve ser bastante filtrado. Eu não defendo um mundo ‘politicamente correto’; anseio por uma sociedade menos violenta e preconceituosa e que pare de deprimir, machucar e matar a diferença. Esse cuidado vai ajudar a selecionar quais experiências são compatíveis com a mente infantil. […] Tenho esperança na boa curadoria de pais e de professores.”

A sociedade menos violenta de Leandro Karnal, ao fim, consiste numa sociedade em que se encobre a causa da violência. É a sociedade em que todos ficam embasbacados com intelectuais abaixo da mediocridade, que poderiam abrir uma fábrica com a quantidade de abobrinhas que espalham. E o fim, por incrível que pareça, é um desmentir de tudo o que é apresentado antes: “Tenho esperança na boa curadoria de pais e de professores”. O texto poderia ser só isso, mas então não levaria adiante a campanha ditatorial de censura da burguesia. O colunista se porta como um bom servo, que lê e pensa apenas aquilo que é permitido. Quem sabe ele não ganha um biscoitinho na tigela?

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