Ao que tudo indica, a literatura feita por gays, lésbicas, travestis, transexuais, enfim, pelas minorias sexuais, é novidade da segunda metade do século XX em diante. Essa ação afirmativa não abrange apenas os sujeitos eróticos, pois se estende às práticas eróticas tais quais o sadomasoquismo e demais fetiches; isso se verifica nas vertentes sadomasoquista e fetichista da literatura introduzidas no Brasil por Wilma Azevedo e Glauco Mattoso. Além disso, a “M(ai)s – antologia sadomasoquista da literatura brasileira”, e “Aos pés das letras – antologia podólatra da literatura brasileira”, organizadas por Glauco Mattoso e por mim, foram editadas respectivamente em 2008 e 2010, antes da antologia “Poesia gay brasileira”, organizada por Amanda Machado e Marina Moura, de 2017.
Quando se trata do tema literatura e erotismo, é necessário mencionar, juntamente com Glauco Mattoso e Wilma Azevedo, os escritores Roberto Piva, João Silvério Trevisan, Horácio Costa, Ana Cristina Cesar, Cassandra Rios e Leila Míccolis; os autores citados a seguir, porém, são todos da nova geração de poetas.
Considerando-se as identidades sexuais e o pluralismo erótico questões importantes das causas sexuais, poemas tematizando a dialética entre o masculino e o feminino podem ser bons exemplos dessa literatura. Para tanto, eis três poemas: o primeiro, um poema do Bellé Jr., do livro “A morte chama senhora”, 2017; o segundo, a parte I da “Balada para Vita Sackville-West”, do livro “Movimento em falso”, 2016, um poema da Simone Teodoro; o terceiro, “essa paixão execrada pelos folhetins”, do livro “E quando borboletas carnívoras dançam no estômago”, 2021, da Ingrid Carrafa:
Bellé Jr.:
ter um pau enfiado no cu, senhores, é por vezes muito mais / prazeroso do que ter seus poemas enfiados nos ouvidos. / ter um pau enfiado no rabo, macho, é certamente mais / interessante do que ter suas teorias enfiadas goela abaixo. ter um / pau enfiado no cu, homem, é de uma hombridade reveladora e / transcendental. ter um pau enfiado no cu, poeta, é coisa lorca.
Simone Teodoro:
“Balada para Vita Sackville-West” – I parte
Sigo / pela calçada suja / de madrugada // Tão confortável / como se fosse um rapaz // Calças largas / camuflam / as coxas // Mãos nos bolsos / cabelos curtos // Tão confortável / como se fosse um rapaz // Homem nenhum / tem ganas / de devorar-me // Levo uns rabiscos / no meu embornal // Mas / oh / e se desconfiam / que tenho boceta / no lugar de um pau? // Piso a calçada mijada / – Segura – / Como se fosse um rapaz
Ingrid Carrafa:
essa paixão execrada pelos folhetins / que me leva ao prazer com perigosas carícias / chicotes, velas, sua mão na minha cara / aos seus pés amarrada / cadela de quatro no cio / me asfixiando até eu inteira molhar / rasgamos toda cartilha do certo e errado / flertamos com o perigo / canibais famintos / farinha do mesmo saco / sua língua no meu rabo é descanso de batalha / minha sina profana e imunda / homem pagão / faz do meu corpo masoquista / vidro em estilhaço / sacia sua fome na minha carne / rasgada / e escuta a música / meus gemidos de tesão / Eu não vou mais fugir de mim / de nós / e do nosso segredo / sou sua na obscuridade de nossas almas
Nos três poemas, discutem-se os papeis convencionalmente atribuídos a homens e mulheres, realizando-se uma das principais temáticas das literaturas gay, lésbica, sadomasoquista etc. Em poemas anteriores, Bellé Jr. apresenta-se heterossexualmente, entretanto, no livro citado, há o poema reproduzido, em que esse homem, vivenciando o amor com outro homem, coloca-se inclusive na posição passiva da sodomia cantada nos versos.
Na poesia da Simone Teodoro, explicita-se a temática lésbica logo na dedicatória a Vita Sackville-West, célebre por suas relações amorosas com Violet Trefusis, Virginia Woolf e outras companheiras. Prosseguindo nas discussões da sexualidade, no poema a segurança da mulher se deve ao mimetismo dos trajes supostamente masculinos com os quais a narradora se complexifica, colocando-se ao longe das simplificações sociais.
No terceiro poema, embora discutam-se sexualidades alternativas, o questionamento não é homoerótico, mas do papel dos amantes nos rituais eróticos, no caso, a sexualidade sadomasoquista, especificamente, a sexualidade da mulher masoquista. Nos versos, a poeta, além de tematizar artisticamente ritos eróticos constantemente mal interpretados, pois envolvem os limiares entre o prazer, a dor e as relações de sujeição entre os praticantes, ela ainda discute o papel da mulher em tudo isso, entregando-se, em suas próprias palavras, a “chicotes, velas, sua mão na minha cara / aos seus pés amarrada”, não a estupradores, mas a seu amante, novamente em suas palavras, um “homem pagão”. Visceral e contundentemente, Ingrid Carrafa dá novos significados à emancipação feminina, questionando as simplificações traçadas entre gêneros e sexualidades, inserindo outras minorias sexuais nas lutas políticas contra a repressão.
Por fim, vale lembrar de que o Brasil sempre foi um país notável por suas liberdades sexuais e seria lamentável se ele não permanecesse assim. Embora haja coibições violentas, a parada gay vigente no Brasil não se compara com as demais espalhadas pelo mundo; de Roberta Close a Pablo Vittar, os travestis brasileiros, merecidamente, são mundialmente famosos; durante a ditadura militar de 1964, em plena repressão, a banda Secos e Molhados fez enorme sucesso com performances e composições explicitamente gays, tais quais “Sangue latino” e “O vira”; durante essa mesma ditadura, foram uma mulher, a Wilma Azevedo, e um gay, o Glauco Mattoso, os introdutores da temática sadomasoquista na literatura brasileira.
Não é de causar surpresa, portanto, a presença vigorosa das poesias gay, lésbica etc. na literatura brasileira contemporânea; é criticável que a pauta identitária, sempre dispostas a traçar estereótipos intransponíveis, raramente reflita sobre complexidade da sexualidade brasileira e da arte erótica de nosso país.



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