Na semana passada comentamos o crescente número de funcionários demitidos por Google, Microsoft, Meta, entre outros monopólios da área de tecnologia da informação. Os afastados não foram trabalhadores que atuam nos galpões ou na manutenção dos enormes data centers dessas empresas, mas os programadores, que como eu, criam e mantém o software responsável pela valorização exponencial dessas empresas. Na última semana, o Spotify se juntou à onda de demissões e ainda não há nenhuma reação da categoria.
Há quem diga que estão sendo demitidos apenas contratações recentes, do período da pandemia, quando um volume enorme de dinheiro foi injetado em empresas de tecnologia, oriundo dos pacotes de “resgate aos banqueiros” organizados pelos estados imperialistas. A recente alta de juros e a saturação do mercado tornaram esse tipo de investimento menos atrativo aos especuladores, o que naturalmente se reflete num corte de despesas por parte das empresas. Esse argumento, porém, não conta toda a história. Há muitas postagens circulando na rede social profissional LinkedIn (de propriedade da Microsoft, para quem não conhece o grau de monopolização do mercado digital) com relatos de funcionários com mais de 10 anos de carreira nas Big Techs que tiveram seus contratos interrompidos sem nenhuma cerimônia.
A reação do público seria cômica, se não fosse trágica. “Agora é a hora de abrir seu próprio negócio,” diz um internauta. “Abra uma startup, você é muito competente”, diz outro.
Passa pela cabeça de poucos organizar um movimento contrário às demissões, uma ação de classe. Há razões mais práticas como o fato das demissões serem espalhadas pelo mundo, o que se soma à popularização do trabalho remoto na categoria, que atomizou fisicamente cada trabalhador e limitou a coordenação de uma reação conjunta ao mundo digital. O trabalho tornou-se extremamente impessoal e a ideia de que a pessoa representada por uma foto na sua tela seja seu companheiro é muito mais difícil de assimilar quando todos dividiam o mesmo escritório. Além disso, há razões históricas para a falta de organização dos programadores.
A programação de computadores é uma profissão que surgiu das universidades, ainda nos anos 1960, quando praticamente apenas pesquisadores tinham acesso a computadores. O computador pessoal democratizou parcialmente a tecnologia, mas o trabalho continuou nas mãos de entusiastas até que efetivamente um número significativo de pessoas tivesse acesso às novas tecnologias. Essa origem, cada vez menos reconhecível, deu à categoria um grande prestígio social, reconhecido nos salários altos que formam a base material para a arrogância, o individualismo e o egocentrismo da maioria dos profissionais da área.
Poucos enxergam o trabalho como algo coletivo (à exceção talvez da comunidade de software livre, mas nem sempre!). O software, assim, seria o produto da mente genial de um ou outro programador. Daí a ideia de que, ao ser demitido, o cidadão conseguiria montar seu próprio negócio. É possível que alguns consigam de fato, mas essa certamente não será a norma.
Essa ideologia, é claro, não pode ser modificada por um artigo de opinião ou um debate, afinal, tem bases materiais. Para mim, isso se desfez através do envolvimento político e da constatação do estado atual do software moderno. Nossos computadores são cada vez mais rápidos (ordens de magnitude mais rápidos) e os programas são cada vez mais lentos, carregados de propaganda e funcionalidades inúteis que servem apenas para extrair valor dos usuários para os donos das plataformas.
Essas ideias, porém, estão longe de ser a norma. Acredito que essa onda enorme de demissões será o verdadeiro catalisador de uma nova etapa para a nossa categoria. Ainda não reagimos em conjunto, apenas porque precisávamos tomar um susto. A proletarização da programação já acontece de longa data, afinal, se há algo abominado pela burguesia, essa coisa é salários altos. Por isso a proliferação de cursos de programação informais, a dispensa de diplomas universitários para atuar na área, o grande incentivo à inclusão de mulheres na área. Não acho que nada disso seja ruim, mas o fato é que esses fatores contribuíram para a formação de um crescente exército de reserva que visa acabar com a situação de pleno emprego da qual gozávamos na categoria.
Portanto, não é apenas a situação econômica que impulsiona as demissões, mas a proletarização da nossa área e uma forte pressão para a redução de salários. Os programadores precisam se organizar com urgência. A internacionalização do trabalho é um desafio, mas também é um fator positivo do ponto de vista político. Além disso, temos que nos unir com aqueles que trabalham com os sistemas que desenvolvemos, como entregadores e motoristas, criadores de conteúdo. Temos que nos unir àqueles quem testam à exaustão o produto do nosso trabalho e aos que atendem usuários frustrados com as suas infindáveis falhas.
Seria injusto se não mencionasse os esforços nessa direção, como o Infoproletários, aqui no Brasil, e outros sindicatos nos EUA, especialmente na área de desenvolvimento de jogos onde a exploração é maior devido à relação emocional dos trabalhadores com seu trabalho. Ainda assim, esses esforços são insuficientes, dado que não houve uma reação organizada às mais de 100 mil demissões mundo afora que aconteceram apenas neste mês. Precisamos estar conscientes de que o cerco está fechando e devemos estar organizados não para defender a condição “privilegiada” de nossa camada social, mas defender coletivamente os interesses da nossa categoria que só tende a crescer.
*A coluna não expressa necessariamente a opinião desse jornal