A luta encarniçada, levada adiante tanto pela direita quanto por setores da esquerda, contra a liberdade de expressão, contra o direito de falar, contra a manifestação de determinadas opiniões tem levado a um esforço ingrato para demonstrar os benefícios da censura, da arbitrariedade judicial e da restrição aos direitos democráticos.
Em coluna publicada no jornal golpista Folha de S. Paulo, com o título Não é bobagem: discursos políticos podem causar danos reais, Deborah Bizarria, que se intitula economista e coordenadora de Políticas Públicas do Livres, procura defender que “as palavras de líderes populistas podem moldar a realidade e afetar o bem-estar da população ao incentivar ou não a aderência a políticas públicas”.
É verdade que a autora, no artigo, não chega a defender abertamente a censura e as restrições à liberdade de expressão, mas toda a sua argumentação serve justamente para justificar quem o faz, e se pode dizer que seu raciocínio joga necessariamente água no moinho dos defensores da censura. Se determinados discursos políticos podem causar danos reais, concretos à população, e cabe à sociedade evitar tais danos, logo, é preciso fazer algo em relação a esses discursos. Para a defesa da censura falta um curtíssimo passo.
A autora procura dar ares científicos ao seu ponto de vista e, para tanto, recorre a um “estudo quantitativo” de três economistas, publicado na American Economic Journal, em que se busca demonstrar “como os discursos do então presidente Jair Bolsonaro afetaram o comportamento dos seus eleitores durante a pandemia”.
Quando se analisa os argumentos e raciocínios a que a autora recorre, fica claro que estamos diante de nada mais do que falácias. A autora afirma que o estudo mostrou que “cada 1 ponto percentual adicional na parcela de votos para Bolsonaro em determinado lugar implicou em um efeito de aproximadamente 0,1 pontos no índice de distanciamento social após os discursos”. O que ela quer provar é que, em lugares com maior quantidade de eleitorado bolsonarista, o índice de distanciamento social acompanha a evolução de votos para Bolsonaro. O que significaria que, segundo a pesquisa, o discurso de Bolsonaro tenderia a estimular pouco o distanciamento social.
A falácia consiste justamente em atribuir um efeito de causalidade entre o discurso de Bolsonaro e o comportamento do seu eleitorado, desconsiderando outros fatores que poderiam igualmente afetar o distanciamento social. Havia possibilidade real para tal eleitorado cumprir as normas de distanciamento? Por acaso eles tinham condições de aderir ao “home office”, que, na verdade, ficou restrito a uma pequena parcela da população, ou tiveram que ir, via transporte público, por exemplo, aos seus locais de trabalho? Isso é ainda mais importante levando-se em consideração que uma parcela do eleitorado de Bolsonaro está localizada nas camadas mais pobres da população. Ao fim e ao cabo, a pretensa correlação que a autora menciona não prova nada.
Outra falácia, Bizarria tenta corroborar sua tese afirmando que “se verificaram aumentos das despesas com cartão de crédito nessas mesmas localidades, especialmente em setores não essenciais, como bares, restaurantes e cinemas.” Mais uma vez, temos aqui outra relação causal que não fica demonstrada. Por que atribuir tal comportamento ao discurso de Bolsonaro, e não, por exemplo, ao Auxílio Emergencial de R$600,00 que o então presidente concedeu, que poderia ter aumentado os fluxos comerciais com cartão de crédito? A relação entre os dois fatores é puramente arbitrária.
A autora mesma reconhece que o estudo “não se proponha a estimar o número de mortes causadas por essa postura”, o que só mostra a fragilidade extrema da investida argumentativa.
O problema central reside em que a autora força a barra buscando demonizar o discurso de Bolsonaro, e não seus atos, sua política. O grande problema de Bolsonaro na questão da pandemia não foi seu discurso, mas sua política. Foi a ausência de investimento na saúde pública (enquanto destinava bilhões para os banqueiros), o retardo na chegada das vacinas, a ausência de política para garantir um verdadeiro distanciamento social (e não o distanciamento farsesco promovido pelos governadores da direita tradicional), entre outras políticas de Bolsonaro que efetivamente contribuíram para a calamidade social para a qual o povo brasileiro foi arrastado durante a pandemia. O discurso de Bolsonaro é, no final das contas, algo secundário.
E por que a autora elege o “discurso de Bolsonaro” como o vilão da história? A resposta é simples: porque está em curso no Brasil (e no mundo) uma ofensiva reacionária contra os direitos democráticos, e em especial contra a liberdade de expressão, uma ofensiva que, à primeira vista, se endereça aos bolsonaristas, mas que, ao final, atingirá, com força máxima, os trabalhadores, as massas populares e suas organizações.
Acessando o sítio da organização da qual Debarah Bizarria faz parte, nota-se que o “Livres” se autodefine como “uma associação civil sem fins lucrativos que atua como um movimento político suprapartidário em defesa do liberalismo”. A farsa dos ditos “liberais” fica patente: a defesa das “liberdades” é uma fachada, e, na realidade, toda a argumentação da autora conduz à política reacionária e antidemocrática da censura.