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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

Adeus a Claudio Willer

Claudio Willer, renovador da crítica e da arte brasileiras

No dia 13 de janeiro de 2023 faleceu o poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer. No ano de 2022, escrevi alguns necrológios, todos de artistas importantes para mim, todavia, admirados à distância; Claudio Willer, porém, eu conheci pessoalmente. Quem me apresentou Claudio Willer foi o poeta Edson Cruz, isso faz tempo; foi quando, numa mesa redonda sobre poesia Concreta, eu e o Edson coordenamos os debates com Claudio Willer e Augusto de Campos. Willer, contudo, embora conhecedor da poesia Concreta, deteve-se em outros universos simbólicos e em modos distintos de fazer poesia, isto é, o Surrealismo, a poesia Beat e a chamada filosofia oculta.

Quem estuda o Surrealismo e, especificamente, o Surrealismo brasileiro, com certeza já leu ensaios de Sérgio Lima e Claudio Willer; no volume 13 da coleção Stylus dedicado ao Surrealismo, 2008, lançado pela editora Perspectiva, uma coletânea de ensaios sobre o tema em suas variadas formas de expressão, ambos cuidaram dos tópicos principais da poesia Surrealista, tais quais “O Surrealismo e o Dadá”, “O movimento internacional dos surrealistas e seu contexto no Brasil” e “Surrealismo e humor negro”, textos de Sérgio Lima, e “Surrealismo: poesia e poética”, “Magia, poesia e realidade: o acaso objetivo em André Breton”, “Escrita automática, uma falsa questão?” e “Surrealismo hoje: diálogo”, textos de Claudio Willer, o último escrito em parceria com Floriano Martins.

Lima e Willer foram poetas e isso facilita bastante a sensibilidade tanto para questões estéticas propriamente ditas, quanto para as práticas das políticas literárias, evitando-se, assim, pelo menos dois desvios de análise: (1) o crítico escritor conhece as políticas das editoras comerciais, portanto, desconfiando delas, não as permite ditar os tons da literatura; (2) o crítico escritor, em sua prática, conhece procedimentos literários além daqueles tratados em teses universitárias, cujos orientadores e orientandos podem saber escandir poemas e analisar temas e figuras, mas nunca compuseram versos, sequer escreveram crônicas, contos ou capítulos de romances.

Frequentando a academia, todavia, sem se identificar com sua burocracia, Claudio Willer se dedicou a pesquisar os três tópicos mencionados antes – Surrealismo, movimento Beat, filosofia oculta –, em regra ausentes ou mencionados ligeira e incompletamente nos programas dos cursos de Letras. Para ilustrar a importância dos estudos de Willer, vale a pena citar a poesia de Roberto Piva, amigo sempre lembrado por ele; eis o poema “Os anjos de Sodoma”, do livro “Paranoia”, 1963:

“Eu vi os anjos de Sodoma escalando / um monte até o céu / E suas asas destruídas pelo fogo / abanavam o ar da tarde / Eu vi os anjos de Sodoma semeando / prodígios para a criação não / perder seu ritmo de harpas / Eu vi os anjos de Sodoma lambendo / as feridas dos que morreram sem / alarde, dos suplicantes, dos suicidas / e dos jovens mortos / Eu vi os anjos de Sodoma crescendo / com o fogo e de suas bocas saltavam / medusas cegas / Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e / violentos aniquilando os mercadores, / roubando o sono das virgens, / criando palavras turbulentas / Eu vi os anjos de Sodoma inventando / a loucura e o arrependimento de Deus”

Nesse poema de Piva, encontram-se traços das principais estéticas estudadas por Willer. Antes de tudo, “eu vi (…)”, o verso servindo de mote aos demais, é o mesmo mote utilizado por Allen Ginsberg no célebre poema “Uivo”, verdadeiro hino do movimento Beat, cuja tradução, em língua portuguesa, foi feita por Claudio Willer. Entretanto, ligeiramente distante do universo Beat, poética afeita às paisagens estadunidenses e aos conflitos daquela geração, as metáforas utilizadas por Piva pertencem aos universos dos sonhos e dos delírios, universos caros aos surrealistas; além disso, tais metáforas são predominantemente religiosas, envolvendo anjos e górgonas, cujo sincretismo é característico da filosofia oculta.

Em poemas assim, com referências tão específicas, correm-se frequentemente os riscos das más interpretações; sem teóricos comprometidos iguais a Willer, tais riscos aumentam consideravelmente. Para salientar sua relevância, em vez de listar todos os seus trabalhos, gostaria de comentar, mesmo brevemente, os temas da gnose, do gnosticismo e do misticismo, caros a ele e presentes em vários estudos.

Antes de tudo, o que é gnose? Gnose, em linhas gerais, designa a ação de conhecer e pode ser palavra sinônima de ciência ou sabedoria, entretanto, seu significado celebrizou-se nos termos das chamadas ciências ocultas. Entre tais sentidos, a gnose identifica-se, diretamente, com determinadas linhas do pensamento humano surgidas na virada das eras antes e depois de Cristo. Não há espaço nesta coluna para tratarmos pormenorizadamente de assunto tão complexo; grosso modo, a gnose costuma se expressar por meio dos mais variados sincretismos, articulando-se nele alquimia, mística judaica, astrologia… o famoso Evangelho Apócrifo de Maria Madalena, por exemplo, é um evangelho gnóstico, pois nele Cristo, logo após sua morte e antes de ressuscitar, percorre os céus dos sete planetas, articulando-se, no texto, mística cristã e astrologia, fato sem par nos evangelhos canônicos. No decorrer dos anos, a palavra gnose surge no vocabulário de diversos ramos do ocultismo, entre eles, na Franco-Maçonaria e demais grupos dos tempos modernos, cujas influências na história da filosofia e das artes costumam ser, senão completamente ignoradas, bastante negligenciadas.

Ora, no célebre soneto “Correspondências”, de Charles Baudelaire (1821–1867), tematizam-se relações entre a natureza e o homem típicas da gnose, no caso, da filosofia mística de Emanuel Swedenborg (1688–1772). Eis os versos do poema:

“A natureza é um templo onde vivos pilares / Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas / Fazem o homem passar através de florestas / De símbolos que o veem com olhos familiares. // Como os ecos do além confundem os rumores / Na mais profunda e tenebrosa unidade, / Tão vasta como a noite e como a claridade / Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores. // Há perfumes frescos como carnes de criança / Doces como oboés, ou verdes como as campinas. / E outros, corrompidos, mas ricos e triunfantes // Que possuem a efusão das coisas infinitas / Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso, / Que cantam o êxtase, do espírito e dos sentidos.”

Segundo Anna Balakian, autora de “O simbolismo”, o volume 5 da já citada coleção Stylus, o poema de Baudelaire ganha sentido em relação às doutrinas de Swedenborg, nas quais aquelas correspondências seriam constitutivas da natureza cósmica. As ideias de Swedenborg são ecos de outras doutrinas; sem a pretensão de traçar todos os elos da formação de seu pensamento, é possível encontrar propostas semelhantes em tempos anteriores nas obras de Marsílio Ficino (1433-1499) ou Jacob Boehme (1575-1624) e, no século XIX, o século de Baudelaire, Éliphas Lévi (1810-1875). Ficino é pensador determinante nas ideias do Renascimento, havendo sido fundamental nas formulações do neoplatonismo da época; Lévi aproximou astrologia, cabala, cartas de Tarô e demais ramos da filosofia oculta em livros célebres até os dias atuais, tais quais “Dogma e ritual da alta magia”, “A chave dos grandes mistérios” e “História da magia”.

Em linhas gerais, tais doutrinas pensam o mundo por meio de leis analógicas, nas quais todas as coisas se correspondem; desse ponto de vista, por exemplo, se no mundo celeste há o Sol, no mundo mineral existe o ouro, no mundo dos animais, o leão, no mundo vegetal, o trigo, entre os insetos, as abelhas etc., todos unidos por cores próximas do dourado; nesse mundo formado por analogias, o homem – o microcosmo – reproduz o universo – o macrocosmo – por meio da imagem e da semelhança com ele. Ora, nessa realidade misticamente concebida e formada por correspondências, as reflexões de André Breton descritas no romance “Nadja”, nas quais a cidade de Paris e próprio autor se correspondem, dialogam com as ideias da filosofia oculta e da gnose; nesse tópico, retomamos novamente os trabalhos de Willer, especificamente, o já mencionado texto “Magia, poesia e realidade: o acaso objetivo em André Breton”, em que são analisadas tais conformidades.

Para fomentar essas discussões, impossíveis de serem esgotadas nos limites de nossa coluna, recomendamos duas obras fundamentais de Claudio Willer: “Um obscuro encanto: Gnose, gnosticismo e poesia moderna”, 2010, e “Os rebeldes: geração Beat e anarquismo místico”, 2014; em ambas o leitor pode conferir as ideias inovadoras de Willer, com conhecimento e coragem suficientes para levantar questões, quase sempre menosprezadas, seja por falta de erudição, seja por alienação das relações entre crítica, formação acadêmica, mercado editorial e imperialismo cultural.

Antes de finalizar citando um poema do próprio Willer, gostaria de escrever algumas palavras de ordem pessoal. Claudio Willer foi uma pessoa fantástica, nas poucas vezes quando estive com ele, estive diante de um homem gentil, educado, um verdadeiro cavalheiro, sempre disposto a conversar, a se divertir e a incentivar jovens poetas, tais quais Janine Will, Gabriel Kolyniak, Rita Medusa, entre tantos. Meus profundos sentimentos a seus familiares e amigos mais próximos; desejo, sinceramente, que Claudio Willer esteja integrado aos cosmos do qual tanto cuidou enquanto esteve entre nós.

Eis os versos do poema “À tarde”:

“Olhar com o olhar espantado / o voo do primeiro pássaro noturno / e saber que em breve / haverá algum tipo de confronto / de alucinação coletiva, uivo geral / saber / que por trás do olho / guardamos uma planície de risadas / dobrada em algum desvão da alma // – a sensação lisérgica de estar aí / e perceber / a fumaça dos últimos acampamentos / a casa na encosta do morro / o albatroz que arrepia sua trajetória / os mosquitos que zumbem e que zumbem e que zumbem / nesta tarde / em que três petroleiros se encaram / e trocam sinais ao largo / e uma memória nos persegue / de rios, cataratas e pororocas / nesta praia / que é fim e começo / de qualquer coisa já sabida e possuída / e oculta / no oco da última fibra nervosa”

* A coluna não expressa necessariamente a opinião desse jornal

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