Um debate recorrente na esquerda brasileira que surgiu com força durante a ditadura e se reacendeu durante a Copa no Catar é a relação entre a política e o futebol. Um vasto segmento da esquerda pequeno burguesa defende que política e futebol são mundos separados e no máximo, numa incompreensão da frase de Marx, “futebol é o ópio do povo”.
No entanto, a interação entre os dois mundos é enorme e em vários aspectos, como exemplo. pode-se comprovar que a Grande Guerra de 1914 impactou na camisa do chamado “mais querido do Brasil”, ainda que muitos podem ser referir como o “mais odiado” ou de modo mais jocoso “os mulambos”.
Para aqueles que não conhecem as histórias dos clubes cariocas. Primeiro é preciso esclarecer que na cidade do Rio de Janeiro no final do séculos XIX, os clubes sociais começaram a participar a disputas a remo na enseada de Botafogo no estilo da competição que aconteciam desde 1829 no Tamisa entre as universidades de Oxford e de Cambridge.
Já em 1898 era realizado o primeiro campeonato estadual de Remo na capital da Republica. O cronista João do Rio comenta como foram surgindo vários clubes que disputavam as regatas a remo tais como o Gragoatá, o Guanabara, o Vasco, o Botafogo sendo que este o de regatas que se uniria ao Botafogo Football Club em 1942 dando ao clube da estrela solitária.
Além destes, existia o Clube de Regatas Flamengo, fundado em 1895 em uma casa no número 22 da Praia do Flamengo. Como os jovens fundadores moravam próximos onde eram as regatas foi ganhando uma popularidade tanto que em uma das suas belas crônicas João do Rio diz: “O Club de Regatas do Flamengo tem, há vinte anos pelo menos uma dívida a cobrar dos cariocas. Dali partiu a formação das novas gerações, a glorificação do exercício físico para a saúde do corpo e a saúde da alma.”
Junto com a sua fundação foi estabelecido seu uniforme que seria de listras horizontais nas cores azul e amarelo ouro, simbolizando o céu do Rio de Janeiro e riqueza do Brasil. Contudo, os resultados não viam, as roupas vindas da Inglaterra rapidamente se deteriorava nos mares tropicais. Assim um ano depois sem vencer uma única regata, mudaram para o vermelho e o negro. Quem sabe um homenagem ao livro de Stendhal pois, dificilmente seria uma referência ao socialismo e ao anarquismo.
Dezesseis anos depois da sua fundação, o clube formou um time de futebol a partir de nove jogadores que saíram do Fluminense.
Entretanto os remadores não aceitaram que se usasse o mesmo modelo de camisa pois não queriam ser associados a prática do futebol. Logo, os jogadores passaram a usar uma camisa xadrez rubro negra numa modelagem parecida como uma pipa ou um papagaio por isto apelidada de “Papagaio de Vintém”, preço habitual do brinquedo na época.
Mesmo com o seu inicio glorioso visto que na sua primeira partida oficial em 3 de maio de 1912 no antigo campo do América venceu o Sport Club Mangueira por 16 a 2. Passado um pouco mais de um ano, mudaram mais uma vez o uniforme acrescentando frisos horizontais brancas separando as listras vermelhas e negras um aspecto semelhantes a um cobra coral, parecido com a camisa do Santa Cruz da capital pernambucana.
A adoção do uniforme cobra coral se provou auspiciosa, pois o Flamengo se sagrou campeão estadual pela primeira e com uma rodada de antecedência ao vencer o tricolor carioca por 2 a 1 em 11 de novembro de 1914.
Em agosto do mesmo ano, os blocos imperialistas liderados pela Inglaterra e França de um lado e do outro pelo Império Alemão começavam uma guerra que iria provocar a maior carnifica até então vista e a criação do primeiro Estado operário do mundo.
A paixão pelo futebol se alastrava pelo Brasil e pelo mundo. Tanto que no Rio de Janeiro em 8 de outubro o congresso havia estabelecido um estado de sítio a pedido do General Hermes da Fonseca para fazer frente as greves que o movimento operário estava organizando. Nada disso impediu para cerca de 10 mil pessoas quatro dias depois fossem ao estádio de General Severiano, campo do time alvinegro, para assistir ao confronto entre o Botafogo e o Esquadrão Cobra Coral, marcado pela única derrota do Flamengo no campeonato de 1914 por 2 a 1.
Ao mesmo tempo, na Europa a força do futebol se comprovava de várias formas. Na chamada trégua do Natal, principalmente no setor das trincheiras que as forças britânicas se defrontavam com as alemães além das trocas de presentes ocorreram partida de futebol, uma demonstração da possibilidade da união da classe trabalhadora internacional.
Um artigo de Wallace Mesquita no site hojenomundomilitar de 18 de novembro de 2022 mostra como foi empregado com ferramenta de recrutamento, apelando com cartazes para torcedores específicos, ajudando em fortalecer os laços de camaradagem em uma unidade por meio dos jogos entre oficiais e praças, combatendo o tédio na Esquadra Britânica atracada por longos períodos na sua principal base na Escócia ou manter o condicionamento físico quando as tropas estavam na retaguarda no seu período de descanso.
No Brasil ao inicio da guerra o governo declarou a neutralidade em 5 de agosto mas o debate sobre qual posição correta a ser tomada era continuo, logo se formou um lado “aliadófilo”, como Rui Barbosa, Olavo Bilac entre outros, o deputado Irineu Machado chegou a propor um manifesto de apoio a França que não foi a diante por oposição do deputado Fonseca Hermes. Já o lado “germanófilo” contava com pessoas ilustres como Monteiro Lobato e Lima Barreto. Na Câmara dos Deputados, o Deputado Dunshee de Abranches liderava a defesa do Império Alemão, argumentando que o bloqueio inglês era prejudicial ao comércio brasileiro.
Nos campos de futebol, o Flamengo com sua camisa cobra coral, semelhante a Bandeira Alemão, uma tricolor preta, branca e vermelha, era bicampeão carioca em 1915. Contudo o prolongamento da guerra na Europa e a divulgação pela imprensa carioca das denúncias de massacre e de destruição pelas tropas alemães na Bélgica foi minando a simpatia a causa alemã no Brasil.
Por isto a alteração retirando as frisas brancas e ficando novamente iguais ao uniformes dos remadores do clube. Todavia o crescente sucesso do futebol levou a aceitação desta mudanças por aqueles atletas.
A mítica camisa rubro negra foi usada pela primeira vez em 4 de junho de 1916 em um amistoso contra o São Bento de São Paulo, sem relação com o atual clube paulista, na inauguração do estádio da Rua Paysandu. O placar de 3 a 1 marcou a primeira vitória de muitas com a rubro negra.
A deflagração da guerra submarina irrestrita por determinação do Imperador Guilherme II provocou o afundamento de quatro navios brasileiros sem aviso prévio e sem possibilidade de abandonar os navios, ao reconhecimento do estado de guerra entre o Brasil e a Alemanha, único país sulamericano a entrar em guerra na 1ª Guerra Mundial.
A evolução da camisa do Flamengo mostra como o futebol reflete a complexidade da situação política de um país e do mundo, bem diferente do que entende a esquerda pequeno burguesa.