O filme 1900 (Novecento, 1976), dirigido por Bernardo Bertolucci, merece a nossa atenção por conter algumas reflexões muito interessantes sobre representação da história e da capitulação da esquerda em momentos em que a revolução parece estar ao alcance da mão.
Com mais de cinco horas de duração, o filme narra a relação entre Alfredo (Robert de Niro) e Olmo (Gerard Depardieu). O primeiro é um proprietário e o segundo é um camponês.
A ação percorre cinco décadas do século XX e o cenário é majoritariamente uma propriedade rural, uma fazenda, que Alfredo recebe de herança. Acompanhamos os dois personagens desde o dia em que nascem até o final da II Guerra Mundial.
A história individual de cada um está intimamente ligada à sua condição de classe. O filme é sobre como cada personagem reage diante dos acontecimentos a partir de seu ponto de vista social.
Ao longo do tempo, surgem outros personagens, como o fascista Átila, vivido pelo ator Donald Sutherland ou a moderna Ada (Dominique Sanda), esposa de Alfredo.
A forma de Bertolucci oscila entre o drama hollywoodiano e o épico brechtiano. Podemos acompanhar as relações narradas como se fossem parte de uma saga geracional italiana, parecida com muitos melodramas e novelas que conhecemos.
Por outro lado, podemos também ver os personagens como se fossem tipos, ou seja, como se representassem suas classes sociais e não meramente indivíduos em ação, ou heróis, como o drama prescreve.
Nesse contexto, o cenário da fazenda – a propriedade – e o trabalho que ali é realizado para a geração de riqueza pelos camponeses podem ser vistos como uma espécie de microcosmo. A fazenda reduz os personagens a tipos que, apesar dos nomes e da história individual, representam o corpo social ao qual se inserem: o patrão, o camponês, o capataz.
Logo no início, temos uma cena que é primorosa. O avô de Olmo recebe a visita de seu patrão que quer comemorar com os camponeses o nascimento do neto. Os dois meninos nascem no mesmo dia.
Os homens estão no campo. Um está com uma garrafa de champanhe, símbolo do seu status. O outro segura uma foice que conserta com um martelo, símbolo da sua consciência de classe.
Olmo e Alfredo crescem juntos, como se fossem irmãos. Quando adultos, Bertolucci chega a mostrar tensão sexual entre eles para marcar como são unidos.
Aos poucos, percebemos que todos os conflitos surgem da submissão aos patrões. Primeiro, o avô Alfredo (Burt Lancaster), a seguir, seu filho Giovanni (Romolo Valli) e, por fim, o neto Alfredo também. O trabalho deles, geração a geração, é manter sua posição social e a dependência de todos a essa condição.
É nesse contexto que o fascismo aparece. Alfredo, o neto, é o representante da direita civilizada, limpinha, até liberal nos costumes, que se utiliza do fascismo quando precisa.
Seu casamento com Ada, por exemplo, é uma maneira de apresentar como a classe média intelectualizada está subordinada à classe dominante. Ada é bonita, independente, urbana, culta, conhecedora da arte e dos movimentos modernistas. Ela é a modernidade.
Mesmo assim, se casa com o patrão em um momento em que o fascismo já estava presente. Sua reação não poderia ser mais covarde. Ao invés de lutar, ela se limita a se trancar em um quarto e, quando a situação fica insustentável, fugir.
Poderíamos comparar essa imagem ao identitarismo que presenciamos. No fundo, também é um sintoma da cultura de 1976, que já apontava para esta direção.
A relação entre Alfredo e Átila também é simbólica. Ele entra em cena como um capataz, um gerente da fazenda. Entre o patrão e os camponeses, ele é a classe do meio, o intermediário, e, ao contrário de Ada, o fascista.
O personagem é construído como um assassino perverso, um psicopata oportunista totalmente subalterno ao seu patrão. Há cenas em que ele é comparado a um cão bravo que só obedece seu dono. No caso, sua imagem, às vezes caricata, força uma posição de vilão.
O interesse está no proprietário, que o mantém em sua fazenda e tolera conscientemente e por conveniência o que ele faz. É a cumplicidade limpinha do patrão que dá ao fascista o poder que tem sobre os demais.
A representação não poderia ser mais acurada sobre como os capitalistas utilizam o fascismo para a manutenção do status quo.
No fim da guerra, Atila é o único punido. O povo se volta contra ele com fúria. E aqui é onde o filme realmente se torna uma obra-prima.
Na cena final, totalmente épica, os camponeses estão armados. Juntam-se a eles os partisanos, que estavam escondidos nas montanhas.
Alfredo é capturado por um menino que o entrega a Olmo. A revolução está no ar e tudo que é necessário fazer é matar o patrão. Mas o camponês, que aprendemos a admirar ao longo do filme, faz uma escolha drástica.
Ele conclama seus companheiros a devolverem as armas e a pouparem o patrão. Para tanto, usa um subterfúgio linguístico: “o patrão está morto”, diz ele a todos. “O patrão está morto para que o homem Alfredo possa viver”.
A cena é construída como se estivéssemos em um teatro, no centro da fazenda, com o gesto e a fala dos atores portando uma gigante bandeira vermelha que cobre a todos e mostra a força da revolução pronta para acontecer. Ao salvar seu amigo de infância, o camponês opta pela conciliação de classes.
“O patrão está vivo”, é a fala final de Alfredo.
A representação da capitulação da esquerda italiana no final da II Guerra, encarnada no gesto de Olmo, é o ponto alto desta obra. É uma representação didática, digna de Bertold Brecht.
O final é amargo para quem gostaria de ver a revolução. É doce para quem se identifica com os personagens como indivíduos e busca um final feliz.
É primoroso como reflexão sobre a história e sobre a luta de classes.