O direito da população à posse de armas é um verdadeiro tabu na esquerda universitária. Nas eleições de 2020, durante o mandato de Bolsonaro, boa parte dessa pequena burguesia progressista foi às urnas munida de um livro a fim de fazer uma selfie no momento sagrado do voto e, naturalmente, publicá-la nas redes sociais. Estava dito ali que livros se opunham a armas, estas o símbolo da violência bolsonarista, aqueles o caminho “civilizado” da tão sonhada paz.
Será, no entanto, que existe, de fato, essa oposição? No mundo cor-de-rosa da esquerda cirandeira, agora habitado por bonecas Barbie “diversas”, a pergunta nem mesmo seria possível. O entusiasmo desse pessoal pelo filme da boneca é, porém, sintomático. A ideia de inclusão e diversidade, apresentada pelos capitalistas como a solução pacífica para os conflitos sociais, não é mais que o verniz dado a uma estratégia de vendas – em vez de fazer a máquina do consumo girar em torno de um padrão único (a Barbie original, com suas madeixas louras, seu corpo magro, suas roupas e sapatos de salto alto, banhada em glamour), por que não abraçar todos os nichos de consumo oferecendo a cada um deles produtos que os “representem”, que sejam a expressão de sua “identidade”?
Nesse pacote de diversidade e inclusão, algumas vagas de emprego, em geral mal remuneradas, até podem ser destinadas aos “diversos” (deficientes, negros, indígenas, gordos, transexuais etc.), pois surge um mercado voltado para esses nichos. Diga-se, de passagem, que, quanto mais nichos, melhor para os negócios – não à toa o marketing das marcas e produtos é sustentado pela ideia de “consumo consciente”, que, além do discurso de conservação do planeta, engloba as causas identitárias. Até aí, não se vê mudança social alguma.
O número de pobres qual mal têm o que comer só aumenta. A quantidade de famílias que dependem do Bolsa Família para sobreviver, o que significa ter o mínimo para não morrer de fome, é imensa. Pessoas sem casa, vivendo nas calçadas, procurando alimento nas lixeiras ou fazendo fila para receber um prato de sopa, são o retrato da exclusão. Egressos do sistema penitenciário, idosos pobres, dependentes de drogas sem recursos, gente que precisa do favor de parentes, quando isso existe, não aparece nas belas peças publicitárias “inclusivas”.
A esquerda universitária parece pensar que os pobres no Brasil têm os mesmos problemas da classe média dos países ricos. Houve até quem tentasse corrigir o Lula quando ele prometeu ao povo a volta da “picanha” no churrasco, alegando que as pessoas deveriam grelhar vegetais em vez de comer carne. Sim, essa esquerda faz esse tipo de coisa.
Como a esquerda pequeno-burguesa acredita piamente nas boas intenções dos empresários, dos banqueiros que criam institutos sociais para promover políticas educacionais em troca de abatimento de impostos, das ONGs estrangeiras instaladas na Amazônia etc., fica mesmo muito difícil falar em armas. O pensamento médio dos progressistas é que armas são perigosas pelo risco de acidentes domésticos e, sobretudo, que pessoas armadas vão resolver qualquer pendência da vida cotidiana na base da bala, o que faria da sociedade um verdadeiro faroeste. O uso da arma, vista apenas como um meio de autodefesa contra ladrões e outros criminosos ou contra os vizinhos e os motoristas no trânsito caótico das cidades, é condenado porque caberia ao Estado (portanto à polícia), não ao cidadão, cuidar da segurança pública. Essa é uma visão conservadora na medida em que, além de considerar a população um bando de bárbaros, não põe em discussão a própria estrutura da sociedade.
A esquerda rosa-Barbie parece acreditar nas “soluções negociadas”, evitando o confronto com as instituições do Estado burguês, entre as quais o sistema judiciário, as polícias e as Forças Armadas. Mesmo depois de ler Michel Foucault e Silvio Almeida, a esquerda continua acreditando na seriedade da polícia, que, nos moldes em que é estruturada, é uma força de repressão das camadas mais sofridas da população – aquelas que não são detectadas pelo radar de consumo dos capitalistas. Nada contra “os livros”, mas talvez um pouco menos de leituras da moda e mais leitura de história trouxesse novas luzes a mentes tão civilizadas.
O Estado burguês não hesita em usar armas contra a população (os casos mais escandalosos chegam aos jornais, que cunharam a expressão “bala perdida” para isentar a polícia dos assassinatos cometidos nas periferias); o Exército está de prontidão para entrar em ação contra o povo caso a burguesia decida resolver seus problemas por meio de um golpe militar. Esse, porém, é um mundo sombrio e cinzento, sem Barbies. Será que o povo não precisa de armas para se defender da opressão institucionalizada?
Resta saber se o mundo muda por obra das revoluções ou se a cultura pop, em sua versão barbie-identitária, dá conta do recado.