Falo do que está acontecendo neste exato momento.
Um silêncio entre nós dois. Um espaço e não há nós dois.
Crepita lá fora um enxame de mosquitos – é noite e os galos cantam. Abro a janela, brisa. Respiro. Acabo de tomar banho, cheiro de sabonete, cabelos úmidos. Suco de maracujá, preciso dormir, perdi os óculos.
Falo do que poderia estar acontecendo neste exato momento.
Conversamos noite adentro. Disse que poderia sair a qualquer momento. Forjei interesse na cor de seus olhos, um semitom entre o verde e o caramelo. Casamento nunca. Filhos talvez. É dia de Santa Edwiges. Não gosta de igrejas. Veste uma calça jeans quase surrada e estala a língua para mudar o assunto. Tenho um ingresso de teatro.
Falo do que poderia estar acontecendo naquele momento.
Fala demais. Respiro. Surge o prato, serviram batatas. Meio dia. Notícias da cidade. Pede um guardanapo, me olha e aperta os lábios. Quero sair, estou perto da porta. Entra um homem cego. Parece que chove fino. Outras palavras, risos. Tem sorvete? Já não ouço, começo a mastigar suas orelhas, cheiro sua axila, lambendo sem pressa a curvatura do pescoço. Acabo de despejar todo o azeite em seu decote e pagar a conta com pesos argentinos.
Falo do que neste momento se cristaliza. A escrita é banho-maria. Viajante passivo, fotografo, penso que poderia, mas não devo; e se devo não posso. Uma preguiça continental se apodera de meus músculos, rarefaz meu desejo, queda d’água inviável, contenção perigosa, represa.
Surjo na esquina da rua.