Afinal, a Terra é plana ou não?

Todos já ouviram ou testemunharam algum dia o discurso de um sujeito que acredita na planicidade do planeta Terra em contraposição à versão hegemônica de que ela é redonda – ou bem perto disso. A esfericidade da Terra sempre nos pareceu um conceito bem claro, cientificamente determinado, claramente estabelecido por milhares de anos de observações e comprovações vindas do mundo da Ciência. Todavia, por mais estabelecida que seja esta crença ela começou a sofrer há poucos anos uma contestação muito poderosa de um grupo chamado de Terraplanistas.

Em verdade a ideia de contestar a versão dominante de uma Terra esférica renasceu depois de milhares de anos apenas em meados do século XIX. Quem primeiro a lançou foi um médico e inventor chamado Samuel Rowbotham (1816-1884) que escreveu em 1849 um panfleto (posteriormente transformado em livro em 1881) chamado “Astronomia Zetética – A Terra não é um Globo”, sob o pseudônimo de “Parallax”. Neste livro ele aponta uma série de “contradições” no modelo “globalista” e demonstra que a Terra é, em verdade, um disco com o polo Norte ao centro, tendo em suas bordas uma muralha de gelo, estando o Sol, a Lua e as demais estrelas apenas alguns poucos quilômetros acima de nossas cabeças. Essas ideia acabaram ficando restritas a um grupo diminuto de pessoas até que em 2016 começaram a ser publicados vídeos no YouTube que defendiam a tese de uma Terra Plana em contraposição à crença disseminada de que ela é uma bola que gira no espaço sideral, tão redonda quanto o Sol, a Lua e as estrelas do firmamento. Aí se inicia o apogeu desta tese.

Entretanto, mais interessante do que entender porque Samuel e seus seguidores resolveram questionar uma das concepções mais arraigadas do conhecimento popular, é o título do livro: “Astronomia Zetética“. Afinal, o que isso quer dizer?
Zetética é uma palavra derivada do grego “zetein“, e significa perguntar, questionar, perscrutar e tem como finalidade desmanchar as concepções pétreas que carregamos como verdade, sem perceber que não são baseadas na observação clara dos fenômenos, colocando-as sob escrutínio infinito, sendo, portanto, explicitamente especulativa. O fundamento básico do zeteticismo é a dúvida, e seu método é analítico. Desta forma, para fazer suas investigações sobre a razão primeira de qualquer fenômeno, vai fundo no questionamento das premissas que o sustentam. Ou seja, o zeteticismo é essencialmente um modelo cético e radicalmente empírico de busca da verdade.
Nas palavras da professora Sabine Hossenfelder a ideia da Terra Plana está, apesar de toda a retórica que a sustenta, profundamente equivocada, mas isso não torna a ideia terraplanista uma profunda estupidez. Apesar de estar errada, sua sustentação é criativa, inteligente e curiosa, mas se sustenta em um erro lógico importante: afirmam que a Terra é plana pela falha dos seus detratores em provar o contrário. Em verdade, os erros do terraplanismo são até fáceis de explicar, mas os argumentos utilizados pelos cientistas para provar que vivemos em um Globo não são aceitos por seus adeptos por serem meros “argumentos de autoridade“. Como existe uma ciência muito elaborada para explicar o conceito de globo terrestre e a lei da gravidade, que não é acessível imediatamente aos sentidos, as evidências são rejeitadas.
Mesmo que as concepções da Terra Plana tenham se modificado nestes últimos 150 anos, o modelo de compreensão continua baseado na filosofia zeteticista, a qual assevera que “se quisermos entender a natureza deveremos nos basear tão somente na informação que nos chega através dos sentidos”. Por isso é tão fácil contestar o heliocentrismo, já que os nossos sentidos atestam com clareza que o sol se move diariamente sobre nossas cabeças, enquanto o chão se mantém estático. Quando navegamos pelos inúmeros vídeos que circulam pela Internet a respeito do tema veremos que os argumentos utilizados pelos defensores se baseiam claramente nesta perspectiva filosófica. Em um deles pessoas contestam a esfericidade da Terra ao mostrar a Lua e o Por do sol ao mesmo tempo, demonstrando que ambas estão visíveis a partir de uma terra plana. Outros vídeos, ainda mais simples, mostram pessoas com réguas emparelhadas com o horizonte do oceano, como a demonstrar que a ideia de uma curvatura é falsa, e que nossos sentidos provam essa falácia. Em seu livro Rowbotham nos diz explicitamente que “não vivemos em um mundo heliocêntrico esférico, e isso pode ser comprovado pelos nossos sentidos“.

Essa tese é muito semelhante ao zeteticismo aplicado pelos bolsonaristas nas últimas eleições, que exercitam um ceticismo e um empirismo que os leva às últimas circunstâncias. Por isso pedem provas de que as urnas não foram fraudadas sem, contudo, apresentarem provas de ilegalidades ou vícios nas votações de 1º e 2º turnos. Assim, vociferam contra as eleições como autômatos, apenas por não aceitarem a derrota que o bolsonarismo teve nas urnas. Por certo que por trás dessa descrença não existe um “amor exaltado pela verdade”, mas sim um interesse de caráter político para permitir que os fazendeiros, latifundiários, financistas, militares, líderes evangélicos e especuladores possam manter um mandatário do seu interesse – e sob seu controle – no governo central. Por fim, é claro que os argumentos usados por estes “patriotas” – que se aglomeram em frente aos quartéis, passando privações e usando banheiros unissex enquanto cantam hinos nacionalistas – muito se assemelham ao zeteticismo dos terraplanistas, pois rejeitam a realidade através de um ceticismo radical pelo qual se negam a enxergar a vitórias das forças populares nas eleições majoritárias de 2022. Desta forma, entender as bases dessa filosofia e suas consequências mais radicais nos ajudam a entender o bolsonarismo e sua negação da realidade, suas fantasias e o delírio anticomunista que pregam.
É importante levar a sério tanto os terraplanistas quanto os negacionistas que desejam a volta da ditadura militar. Se eles partem de um ponto correto – o ceticismo que nos estimula a duvidar e investigar sem preconceitos – eles o desvirtuam ao rejeitar sistematicamente as evidências científicas sólidas e bem estruturadas que lhes são apresentadas, demonstrando que seu ceticismo é apenas a fachada para encobrir ações antidemocráticas que desprezam a ciência em nome dos seus interesses.
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