Este ano, no dia 1º de novembro, completou 100 anos da morte de um dos mais importantes romancistas brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto. Morto no quase total esquecimento, produto de sua vida cheio de desgraças e do ostracismo imposto pelos meios intelectuais da época que o desprezaram, internado três vezes num manicômio, vítima do alcoolismo, Lima Barreto teve reconhecimento posterior.
É justamente as dificuldades na vida dos negros pobres no Brasil e seu desprezo pelos pretensos intelectuais os temas de seus primeiro romance publicado.
A primeira obra de Lima Barreto é um romance autobiográfico. A narrativa é dividida em duas partes. A primeira contendo a infância e a adolescência do personagem-narrador, Isaías Caminha, e a segunda quando finalmente consegue emprego num jornal do Rio de Janeiro, o fictício O Globo.
Na primeira parte do livro, o autor apresenta uma crítica social da situação do negro pobre na sociedade. Tal crítica, no entanto, não é uma narração artificial de acontecimentos. Com muita destreza, o autor conduz o personagem-narrador a junto com o leitor ir se dando conta de sua posição social. Não a partir de ideias pré-concebidas da situação do negro marginalizado. O grande valor da crítica está em que Lima Barreto dá a impressão para o leitor que tais situações não foram criadas para provar uma tese. São os próprios fatos, fluindo um atrás do outro, narrados como acontecimentos quase naturais, que fazem o personagem e o próprio leitor compreenderem a real situação do negro naquela sociedade. O leitor toma consciência daquela situação social ao mesmo tempo que o personagem-narrador.
Nesse sentido, Lima Barreto é um anti-identitário. Não há idealismo em sua denúncia social do negro. Há, para ele, os fatos. Não qualquer fato artificialmente montado para provar uma tese. São acontecimentos que poderiam e são vividos pela maior parte da população brasileira no cotidiano. Essa apresentação do cotidiano basta para a denúncia social de Lima Barreto. Desde o episódio onde o jovem personagem é mal atendido numa lanchonete, onde o atendente dá preferência aos clientes brancos, até a prisão sem nenhuma motivo na cidade do Rio de Janeiro, Barreto traz a nu a condição social dos negros e mulatos pobres no País. Coisa que espanta pela atualidade.
Na segunda parte do romance, o personagem-narrador consegue um emprego no jornal O Globo, que segundo Monteiro Lobato era o nome fictício do importante Correio da Manhã. Lobato, aliás, outro grande escritor da época, foi um dos poucos que reconheceram a qualidade de Lima Barreto como romancista.
De forma muito contundente, Lima Barreto desmascara a superficialidade dos pretensos intelectuais, apresentando os jornalistas como grandes burocratas sem nenhum gosto e conhecimento pela literatura. O romance descreve a redação do jornal como um covil de empregados puxa-sacos, superficiais e ignorantes. Sua crítica ao funcionamento dos jornais burgueses, a manipulação da sociedade por essa imprensa e a burocracia dos meios intelectuais também são de uma enorme atualidade. O romance acabou tornando Lima Barreto persona non grata no Correio da Manhã e em outros jornais.
Esse desprezo pela superficialidade dos intelectuais é mostrado pelo autor na apresentação do romance, o personagem Isaías Caminha afirma que:
“Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração. Não sou propriamente um literato, não me inscrevi nos registros da livraria Garnier, do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital ainda não me aclamaram como tal — o que de sobra, me parece, são motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta de estilo e capacidade literária.”