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Ric Jones

Partos, paradigmas em conflito

Parto, ideologias e modelos

A única solução é encarar a assistência ao parto como um campo de lutas em que poderes competem para o controle dos corpos, muitas vezes alienando as próprias mulheres das decisões

Sala de amamentação em uma maternidade soviética

Escrevi um texto sobre a humanização do nascimento (seguido de uma resposta complementar) em que eu criticava o abuso de cesarianas no nosso meio, além de reconhecer a importância dos paradigmas e as ideologias que comandam o pensamento no que diz respeito ao parto e à própria medicina. Muitas pessoas criticaram abertamente o texto, sendo que em uma destas críticas um médico dizia que havia uma “criminalização das cesarianas” por parte de “identitários do parto humanizado”.

Bem, não há porque se surpreender com este tipo de crítica, até porque a cesariana – recurso tecnológico em substituição aos processos fisiológicos do nascimento – por estar sob o controle dos médicos e do sistema hospitalar pareceria – à visão desarmada – ser a forma mais segura e menos danosa de parir. O entusiasmo inicial com esta cirurgia – capaz de salvar vidas quando a fisiologia do nascimento dá lugar aos caminhos espinhosos da patologia – acabaria produzindo sua disseminação mundial muito rápida. No início dos anos 80 a taxa de cesarianas no Brasil era de 24% e no início da 3a década deste século já temos mais do que o dobro: 56% do bebês do Brasil nascem através de uma cesariana, sendo que na classe média – no setor privado e nas “medicinas de grupo” (Unimeds, Amil, Sulamérica, etc.) – a taxa de cesarianas se aproxima de 90% de todos os nascimentos. A forma mais “normal” de nascer no Brasil é através de uma cirurgia abdominal de grande porte, carregada de custos e riscos associados. Por esta razão pensadores do mundo inteiro, e também do Brasil, começaram a questionar sobre qual o real sentido da suprema artificialização do processo de nascimento e quais as consequências dessa perspectiva para a própria humanidade.

Entre as críticas à minha matéria algumas foram formuladas por pessoas pelas quais tenho profunda admiração por sua postura política e como pensadores com abrangência em várias áreas do conhecimento. Em verdade, a principal crítica foi pela dificuldade em aceitar um termo utilizado na matéria, quando falei que para entender o novo paradigma de atenção ao parto era necessário “descolonizar mentes“. Essa expressão foi alvo de críticas, pois dava a entender que se tratava de uma postura idealista.

Ora, eu não cobraria de ninguém que viesse a entender as engrenagens da assistência médica ao parto, algo que refleti durante 40 anos, mas me parece um equívoco acreditar que para combater o idealismo é necessário afirmar que “as ideias de nada valem”. O idealismo parte do pressuposto de que o mundo não pode ser compreendido e que os sentidos humanos deturpam a análise das coisas exteriores. Ora, as ideias movem o mundo e o mundo como podemos enxergar é constituído por elas. Quando se diz que a “mudança das ideias não modifica nada” é um erro. As ideias impulsionam as ações. Enquanto solitárias elas serão estéreis e infrutíferas, mas sem as ideias as ações são caóticas e incapazes de produzir transformação. Além disso, a proposta de que o problema da violência no parto seria solucionado com a simples suplantação do capitalismo não passa de uma ilusão. Um exemplo fácil é a constatação da brutalidade da assistência aos partos na União Soviética, baseada na atenção médica, intervencionista, tecnocrática e mecanicista do parto.

Os dilemas e as concepções sobre o corpo e seus limites não poderiam se esgotar somente pela queda do capitalismo, e os relatos dos partos e dos protocolos utilizados na Rússia soviética não deixam dúvida sobre sua violência estrutural que extrapola os aspectos relacionados ao capitalismo. Seria necessário acreditar que o sistema econômico tivesse o poder de moldar relações de opressão que são anteriores ao próprio capitalismo. O parto já era brutal muito antes do capitalismo se estabelecer, tornado assim por forças culturais de outra natureza. O controle do corpo e da sexualidade das mulheres, surgido com o modelo patriarcal, não pode ser negado se quisermos entender a dinâmica da violência obstétrica. Uma pesquisa rápida sobre as modalidades de assistência ao parto no mundo inteiro – e seus graus variados de violência, inobstante o sistema econômico vigente – pode nos mostrar que precisamos de novas perspectivas, além da suplantação do horror capitalista, para resolver estas questões.

Portanto a “descolonização das mentes” é essencial para que a AÇÃO possa ocorrer, até porque a assistência ao parto no Brasil é uma cópia mal acabada – e mais pobre – do modelo capitalista americano de assistência ao parto que historicamente produz maus resultados. O “extermínio” das parteiras se iniciou nos Estados Unidos no início do século XX, e se estendeu para os países do terceiro mundo – mas não para o consolidado e milenar paradigma europeu de assistência centrada na figura da parteira profissional. Por esta razão é que nossa ação, enquanto ativistas, deve ser lutar junto com as mulheres (em especial) para que abandonemos um sistema ruim, como o americano, para adotar o sistema europeu – igualmente capitalista!!! – centrado na figura da parteira profissional, que apresenta os melhores resultados que a experiência humana já conquistou.

Percebam: tratam-se de dois modelos inseridos em sociedades capitalistas e com resultados absolutamente díspares. Dois paradigmas de atenção conflitantes, divergentes e que competem pela hegemonia da assistência mesmo que compartilhando – em essência – o mesmo modelo econômico.

Assim, a ideia de “descolonizar as mentes” se ampara na proposta de escolher entre os modelos existentes (o modelo tecnocrático, de matriz americana, e o modelo humanista, de matriz europeia), e não é “idealista”, pois reconhece a realidade material dos fatos – a assistência violenta oferecida às mulheres – ao mesmo tempo em que afirma que uma compreensão mais abrangente dos fenômenos é essencial para que as ações possam ser direcionadas e produzir seus efeitos. Não devemos esquecer que o próprio Marx asseverava que “Uma ideia torna-se uma força material quando ganha as massas organizadas”.

Não há dúvida que o fim do capitalismo diminuiria muitas idiossincrasias da atenção médica, mas esta mudança não seria capaz – por si só – de mudar muitos dos conceitos equivocados sobre o que seja a assistência à saúde, qual o sentido da cura e qual o propósito último de um tratamento de saúde. Essas transformações só podem brotar do conflito de ideias, do choque de concepções e novas percepções de realidade. Somente depois que estes paradigmas entrarem em choque, e que a falência dos modelos anteriores produzir uma crise, é que partiremos para a ação e a mobilização políticas, para que assim seja viável a transformação.

Não há dúvida, então, de que entre estes conceitos que precisam ser transformados estão aqueles referentes à assistência médica contemporânea ao parto, uma ideia baseada num sistema de poderes que vai muito além da visão capitalista. A assistência tecnocrática contemporânea parte do conceito de que o acréscimo de tecnologia e intervenções sobre o processo de nascimento poderia mudar para melhor os resultados – uma proposta que se mostrou um fracasso, pois que a objetualização das mulheres pela mecanização do parto produz efeitos deletérios ao negar-se a reconhecer as necessidades psíquicas, físicas, sociais, e espirituais das mulheres durante o nascimento de seus filhos. Como diria a antropóloga Wenda Trevathan, em “Evolutionary Medicine”:

“(…) as raízes do suporte emocional e social às mulheres durante o trabalho de parto são tão antigas quanto a própria humanidade, e a crescente insatisfação com o modo como conduzimos o nascimento humano em muitos países industrializados está baseada na falha do sistema médico em reconhecer e trabalhar com as necessidades afetivas relacionadas com este evento”

Nascimento como esteira de montagem inserido no paradigma fordista

Ou seja: o sistema médico é contaminado por uma ideologia que enxerga os pacientes de forma objetualizada e, por isso, as parturientes são frequentemente alienadas das decisões sobre seus próprios corpos. Se essa visão objetual sobre o outro pode produzir alguns benefícios para o exercício da profissão (em especial a proteção psíquica dos cuidadores) ela esteriliza e dessensibiliza as relações entre médicos e pacientes. O parto, por não ser uma intervenção médica, tem essa clara particularidade, pois ao contrário da exérese de um tumor – algo que o médico faz – o parto é algo que a paciente faz, e a expropriação do processo com a consequente alienação das mulheres só poderia ter, em longo prazo, consequências deletérias.

Durante décadas eu apoiei a visão reformista e revisionista da obstetrícia. Acreditei que a informação dos médicos e sua educação para as vantagens do modelo humanístico de atenção ao parto poderia fazer que ocorresse uma “modificação por dentro” do sistema. Fui levado a crer que o problema das práticas defasadas era a ausência de uma adequada orientação aos profissionais. Todavia, foi apenas depois de experiências frustrantes que eu me dei conta que esta é uma estratégia fracassada. Não existe nenhuma maneira de fazer médicos trabalharem contra suas próprias vontades e inclinações, contrapondo-se à própria lógica intervencionista e tecnocrática da medicina. A única solução é encarar a assistência ao parto como um campo de batalha em que poderes competem para o controle dos corpos e da reprodução, muitas vezes alienando as próprias mulheres dos processos decisórios. É para a luta que devemos estar preparados, e não para a inútil tentativa de convencer médicos a contrariar seus próprios interesses.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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