Desde que comecei a acompanhar política, lá por 2006-2007, Olavo de Carvalho não me era um desconhecido. Contudo, sempre o vi como sendo da mesma família de Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Pondé e Ghiraldelli: uma interface entre o jornalismo e a filosofia de boteco, de muita “sacada” e nenhuma meditação. Assim sendo, nunca lhe dei muita atenção e o lia, como o leio até hoje, para fins meramente recreativos.
Não perdi nada. Olavo de Carvalho não fazia filosofia, mas sofisma e charlatanismo. Não que ele mentisse ou errasse sempre. Pior. Coalhando grandes mentiras com fragmentos de verdades, colocava a verdade a serviço da mentira. Politicamente, ele nada trazia de novo, requentando a xaropada macarthista da guerra fria. Tudo isso embalado numa estética contracultural e espirituosa de “enfant terrible”, o único aspecto no qual Olavo realmente demonstrou alguma genialidade. Mas um aspecto menor do intelecto, até mesmo pueril. Nada, pois, capaz de colocá-lo ao lado dos Mestres. No máximo, talvez, de um Tom Zé.
Mas vá lá. Cada um tem seu jeito. O que eu só vim a saber tempos depois, com certa perplexidade, era que esse retórico de bar havia conquistado um séquito de adoradores, em todos os andares sociais, que o tratavam com devoção religiosa, como se as suas sofistarias surradas e irreverentes fossem a Boa Nova. Ao ponto de alguns chegarem a perder emprego, casamento e até fortunas por causa de Olavo de Carvalho. Nesses casos, contudo, creio que a justiça foi feita, porque quem perde emprego, casamento e altas quantias de dinheiro por causa de Olavo de Carvalho é porque não merece nada disso.
O que o meu ceticismo instintivo não me permitia perceber antes era que, diferente de Azevedo, Mainardi, Pondé e Ghiraldelli, Olavo apresentava-se não como um mero (de)formador de opinião, mas como um guru, um mestre de kung fu para almas fracas e desesperadas vivendo isoladas e desoladas em um mundo sem Deus e sem amor. Ele encontrou um terreno fértil no Brasil, um país crédulo e de mentalidade supersticiosa, onde picaretas como Flordelis, Valdemiro Santiago, João de Deus, Sérgio Moro e Dr. Fritz brotam como cogumelo na chuva.
Surpreendente, de certo modo, foi ele se notabilizar como referência em conservadorismo cristão mesmo tendo passagens nada secretas pelos meios da astrologia e do islamismo e pelas searas da poligamia, de barcas egípcias e tantas outras extravagâncias.
Mais espantosa ainda foi a ascendência política conquistada por Olavo em um país de tão alta estima pelo decoro público como é o Brasil, a ponto de conseguir colocar um preposto seu no Itamaraty, uma das mais respeitáveis instituições brasileiras, e avacalhar completamente a política externa do Brasil, num vexame sem precedentes na história mundial moderna.
Talvez seja esse o aspecto mais surreal da trajetória de Olavo, que o torna uma figura digna do livro Os Sete Loucos, do escritor argentino Roberto Arlt. Há algo aí que o materialismo e o realismo não explicam. Não se trata de “interesses de classe”, pois o olavismo sempre foi periférico e residual nas classes dominantes brasileiras. Também não se trata de Olavo trabalhar para a CIA, pois, desde a II Guerra Mundial, todas as eminências políticas no Brasil são ligadas, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, aos EUA.
Nesse ponto vemos o poder da personalidade na história, o poder dessa força imaterial que, para o bem ou para o mal (no caso do Olavo, para o mal), age magneticamente sobre as pessoas, inclusive aquelas que, por força das circunstâncias, ocupam os postos de comando do país. Esse é o tempero da vida humana: ela não se reduz a tipos delimitados, contextos especificadores e a condições estruturantes, há algo nela que sempre transborda desses limites e que é capaz de redefini-los, estabelecendo novos rumos e e novas possibilidades, muitas vezes piores, mas não menos inéditos.
Pitoresco, charlatão, manipulador, despudorado. Em uma palavra, excêntrico. Tão excêntrico a ponto de escolher passar seus prováveis últimos dias no Brasil, país que renegou, e em um hospital universitário da USP – hospital público, do SUS e da USP, todas as instituições que ele sempre demonizou -, desmoralizando toda a sua obra, como um ilusionista que, no último ato da peça, desfaz seus artifícios às vistas de todos.
Bem ele disse, no ano passado que o seu único compromisso era com o “trabalho do negativo” de Hegel, isto é, com a contradição sem síntese, com a dissolução de toda realidade sem colocar nada no lugar, abrindo espaço para toda e qualquer maluquice. Olavo foi, sem dúvida, o maior desconstrutivista brasileiro – tanto mais por se utilizar da ironia (praticando a desconstrução em nome do conservadorismo, que por definição deveria conservar, ser positivo e não negativo) – a ponto de desconstruir a si próprio.
Enquanto centenas de professores e estudantes universitários politicamente corretos e existencialmente assépticos dedicam-se a minuciosas exegeses da obra de Jacques Derrida, o Papa do desconstrucionismo, imaginando estar do lado oposto de Olavo de Carvalho, esse vive Derrida, desconstruindo o próprio desconstrucionismo, mas de modo a aparentar oposição a ele, mantendo-o vivo numa interminável “dialética negativa”. Bem que ele escolheu os EUA como morada e referência, pois, segundo Derrida, os EUA eram a própria desconstrução.
Não posso celebrar a morte do Olavo nem a de ninguém, pois a morte é o destino de todos nós, então não é questão de desejar, só de esperar. Que ele é um canalha, não restam dúvidas. Mas é um canalha de quem se pode contar algo interessante e inusitado. De canalhas como os que estamos acostumados a ter, com vidas insossas, o Brasil já tem e já teve muitos. Faltava um canalha de cuja vida ao menos se pudesse dizer “contando ninguém acredita”. São tantos canalhas no Brasil que, por uma questão de probabilidade, um dia isso aconteceria. Aconteceu.