Por Rafael Dantas
Um dos criadores da concepção revolucionária do mundo em que vivemos – o marxismo – e um dos maiores guitarristas da história do Rock’n’roll: o que tem a ver uma coisa com a outra?
Passando da metade do terceiro volume das Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels, topei com um livro escrito por este último em 1888: Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica. Alguém conhece?
Que livro, meus senhores… que livro!
Os que estão familiarizados com essa obra certamente não a conheceram por intermédio de algum medalhão universitário. Por mais que “marxólogos” e “marxianos” abundem nas faculdades de ciências humanas, aposto um dedo que qualquer um deles tenha o desplante de apresentar a seus alunos, no terreno da sua ilibada “academia”, o tabu que é a filosofia materialista avançada por Marx e Engels. E fogem dela como o Diabo da cruz por mais de um motivo. Vejamos.
Incompetência
Calam-se sobre a concepção materialista da história, em primeiro lugar, por pura e simples ignorância. Prescindem do marxismo porque a “academia” não é lugar para essas coisas chãs, imundas, criadas e desenvolvidas no melhor interesse da classe operária, da revolução proletária, do progresso da humanidade, enfim, do socialismo.
Além disso, a filosofia materialista não está na moda. Ela, como disse Engels no livro, corresponde a um determinado estágio do desenvolvimento da sociedade humana. É a maneira de compreender e fazer corresponder ideias e realidade, ser e pensar. É a forma do pensamento em permanente desenvolvimento, assim como o mundo natural, material, que serve de base à sociedade humana. É a concepção revolucionária do mundo e da sociedade humana em permanente transformação. E por acaso alguma universidade – esses depósitos de almas condenadas a produzir pilhas e pilhas de papel para empoeirar nas suas bibliotecas – está interessada em organizar as classes oprimidas pela burguesia para uma revolução, para a derrubada e superação do regime capitalista, da escravidão moderna? Não. Lógico que não.
Picaretagem
O marxismo não está na moda. Nunca foi moda. Ocorre que só não é possível ignorá-lo e isso bem o demonstrou o impacto e a transformação da sociedade em mais de um século causados pela Revolução de 1917. Para atravessar o umbral desses purgatórios do pensamento que chamam “academia”, o marxismo sofreu uma transformação. Foi depurado do seu conteúdo revolucionário. Esterilizaram as ideias que realmente põem em movimento a ação revolucionária da classe operária. Reduziram-no a uma abstração, um “sistema”, quando muito um “método”.
Pseudomarxistas de hoje recorrem a pseudomarxistas do passado para deturpar sistematicamente a concepção de mundo da classe operária. Assim, Marx, Engels, Franz Mehring, August Bebel, Karl Káutski, Rosa Luxemburgo, George Plekhanov, Lênin, Trótski, entre outros, foram desprezados, ridicularizados e banidos dos currículos de filosofia, ciências sociais e história.
Em seu lugar, platitudes e aberrações como as escritas por Lukács, Benjamin, Althusser e outros infelizes são contrabandeadas como o “marxismo que deu certo”. Deu certo para as pseudociências humanas destiladas na universidade, que nada (de útil) permitem compreender sobre a realidade.
Os novos “mestres” são estéreis do ponto de vista do conteúdo e insossos, incapazes de atrair quem está insatisfeito e revoltado com o mundo em que vivemos. São uns eunucos que, por um ofício quase vingativo, castraram o marxismo.
Dever de ofício
Mais um motivo (o último, prometo): o marxismo não serve para o carreirismo universitário, aquela competição de insetos por um orientador, uma especialização, um título a mais, um diplominha e a consequente remuneração.
Como disse José Murilo de Carvalho, “ter que fazer uma tese de doutoramento na incerteza de como será recebida e na insegurança quanto ao futuro da carreira é experiência traumática” (“Como escrever a tese certa e vencer” – jornal O Globo, 16/12/1999 – uma divertida crônica cuja leitura recomendo).
Isso força o aspirante a morto-vivo intelectual a se adaptar ao gosto dos vivos de alma morta que sequer lerão os calhamaços que se lhes apresentam e o marxismo, o verdadeiro marxismo revolucionário, proletário, comunista, não tem lugar nessa fábrica de exegetas da ideologia dominante, a ideologia burguesa nas suas variantes econômica (neoliberalismo), filosófica (idealismo), histórica (antihistoricista), etc.
Mas os que aspiram a um lugar no panteão de mediocridades universitárias correm o risco de serem lidos. É aí que mora o perigo. O pobre coitado que dedicar seus esforços e se submeter às regras da ABNT para documentos inúteis como uma tese de filosofia ou ciências sociais será, como bem notou o cronista, “identificado, classificado e avaliado de acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar os autores e usar os termos corretos, estará a meio caminho do clube. Caso contrário, ficará de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode vir tarde demais.”
Desculpe o leitor, cito mais um trecho dessa crítica (bem, ao menos espero que seja uma crítica… sempre fiquei um pouco em dúvida sobre a possível ambiguidade deixada pelo autor da crônica que é, ele mesmo, um medalhão da Academia Brasileira de Letras e ninguém chega lá sem lamber umas botas e outras palavras que começam com “bo”).
Disse ele, certo para o bem ou para o mal, que: “A regra no Brasil foi e continua sendo: cite sempre e abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. É preciso identificar os autores do momento. Eles serão sempre estrangeiros. Atualmente, a preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem. Cito alguns, lembrando que a lista é fluida. Entre os franceses, estão no alto Chartier, Ricoeur, Lacan, Derrida, Deleuze, Lefort. Foucault e Bourdieu ainda podem ser citados com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no entanto, estará vinte anos atrasado, cheirará a naftalina. Se for para citar um marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F. Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação obrigatória. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas. Dentre os ingleses, Hobsbawm, P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores norte-americanos estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis. Robert Dahl ainda é aposta segura, Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C. Geertz pega muito bem, o mesmo para R. Darnton e Hayden White em história. Não perca tempo com latino-americanos (ou africanos, asiáticos, etc.). Você conseguirá apenas parecer um tanto exótico. ( …) Um autor brasileiro, no entanto, nunca poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital. Você poderá ser aprovado na defesa da tese mas não terá seu apoio para negociar a publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele, ou ela. Se o orientador ou orientadora não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula, uma conferência, qualquer coisa.”
Ser revolucionário é…
O círculo se fecha. Pergunto: que professor universitário é, no verdadeiro sentido da palavra, um marxista revolucionário?
Respondo: aquele que está em permanente contradição com o trabalho de explanador das bobagens que a classe dominante quer que os jovens estudantes aprendam e reproduzam quando se tornarem eles mesmos bons “comentadores”. Isso quando a burguesia não estão simplesmente preparando uma camada da juventude para servir de feitores de seus escravos modernos, os operários.
Por que diabos um professor doutor seria autorizado por seus pares (outros doutores) a ensinar à juventude o que é, realmente, pensar, ser e agir como um revolucionário comunista? Lógico que não.
A juventude revolucionária hoje, e talvez cada dia mais, corre o risco de comprar gato por lebre quando se vê confrontada com a questão: “o que eu quero ser quando crescer?” Aconteceu comigo quando fui atraído pelo brilho da Faculdade de Filosofia da USP, com a ilusão de que lá seria o lugar onde eu encontraria o que eu nem sabia que estava procurando: a revolução.
Devia ter dado atenção e meditado sobre a pichação num muro da FFLCH lá pelos idos de 2002: “Entramos marxistas revolucionários e saímos weberianos resignados”. Só fui compreender depois essa verdade da vida, que Marx descobriu bem cedo: “Os filósofos até agora se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo.”
Bem, e o que Frank Zappa, um dos maiores compositores e guitarristas da segunda metade do século 20 tem a ver com isso? Infelizmente, eu só conheci o professor Zappa depois da faculdade (nem mesmo a música que se ouve aí presta!). Ele, um músico revolucionário, ensina também sobre a vida: “se você quer trepar, vá à faculdade. Mas se você quer aprender alguma coisa, vá à biblioteca”.
De minha parte, quero mesmo é transformar o mundo. Segui o caminho da revolução, do governo operário e do comunismo. Sigo o Partido da Causa Operária.