─ Eduardo Vasco, de Moscou
Cheguei à Rússia na tarde de terça-feira (05). Na corrida de Yandex Go (o Uber russo) do Aeroporto Internacional de Vnukovo até o apartamento do meu amigo Kostia, atravessei a cidade de Moscou. Próximo ao centro, reparei um prédio com a fachada decorada com a letra Z, enorme. Kostia me disse que tratava-se do Teatro Acadêmico de Sátira, administrado pela Prefeitura de Moscou.
Engana-se, no entanto, quem pensa que a propaganda da operação militar especial das forças armadas russas na Ucrânia, iniciada no dia 24 de fevereiro, é algo imposto de cima para baixo. Quem conversa com os russos no dia a dia e observa a vida cotidiana nota que a guerra de libertação da Ucrânia (e é isso o que a Rússia está fazendo, libertando o país do jugo da OTAN) é popular entre os cidadãos.
Kostia é um homossexual assumido de 39 anos que vive com seu companheiro, Ivan, em um apartamento (como todos os moscovitas) no bairro de Krasnoselskiy, região central de Moscou. Na capital russa, tudo gira em torno do metrô ─ um dos maiores do mundo, com 222 estações, que levam a todos os lugares da cidade ─, por isso os moradores raramente se referem ao seu bairro quando dão a localização, mas sim à estação de metrô mais próxima ─ no caso do meu amigo, a estação Komsomolskaya.
Ele não é militante, ativista ou algum fanático ou radical, mas apoia Putin e a ação na Ucrânia.
─ Há séculos a Europa chega aqui para roubar nossa terra, nossos recursos, nossas vidas. Esta é a nossa resposta para o Ocidente, simplesmente não há outra opção [que a resposta militar à OTAN] para a nossa sobrevivência, diz.
Me conta, ainda, que todos os russos que ele conhece apoiam a operação militar.
─ No trabalho do Ivan (uma empresa de TI), só uma mulher pinta as unhas com as cores da bandeira ucraniana.
Ontem (10), passeando pela Rua Arbatskaya ─ um centro comercial com inúmeras lojas de souvenirs a três quarteirões a oeste do Kremlin ─ vi um homem vestido com uma camiseta com o Z estampado. Essa letra não existe no alfabeto cirílico, é uma transliteração da primeira letra da frase за победу “za pobedu” (que significa “pela vitória”) e é utilizada como marca nos tanques russos que se encontram na Ucrânia combatendo os nazistas.
Há cerca de dez dessas lojas na Arbatskaya, além de restaurantes e shoppings. Entre os produtos exibidos em todas as portas de entrada e vitrines dessas lojas, vejo sempre alguns com o Z, que é certamente uma das marcas mais populares nestas últimas semanas. Camisetas, patches, chaveiros, ímãs de geladeira, canecas. Também vi camisetas e ímãs com a letra V (transliteração da inicial da frase В задатьса выполнена “v zadatsa vipolnena”, ou “a tarefa será concluída”). Pergunto a um lojista se há uma grande procura por esses produtos e ele me responde que sim.
O mais interessante é que, tradicionalmente, esse tipo de loja é voltado especialmente para turistas, principalmente estrangeiros. Entretanto, a propaganda terrorista da imprensa mundial contra a Rússia afastou turistas estrangeiros do país, bem como o medo de estar próximo a uma guerra e, principalmente, o bloqueio por parte dos aeroportos e companhias aéreas, que impedem que as pessoas da maior parte do mundo viagem para a Rússia. Eu mesmo, e o companheiro Rafael Dantas, enviados especiais à Rússia, tivemos de fazer conexão em Dubai para depois chegar a Moscou, porque nenhum aeroporto da Europa está fazendo conexão para a Rússia.
Portanto, desde que o conflito direto na Ucrânia se iniciou, o turismo para a Rússia tem sido muito afetado ─ ao contrário de outros setores da economia, que até agora foram muito pouco impactados. Os lojistas inclusive se surpreendem conosco, vindos do Brasil exatamente em um momento em que pouca gente vem para a Rússia. A conclusão disso tudo é simples: neste momento, quem consome os produtos vendidos por essas lojas são os próprios russos. Logo, se há grande procura por símbolos da operação na Ucrânia, essa procura vem do povo russo.
As impressões, observações, respostas em conversas com as pessoas nas ruas, vão perfeitamente ao encontro das pesquisas de opinião, que também mostram um amplo apoio popular à operação especial em solo ucraniano. Um estudo do Centro de Toda a Rússia para o Estudo da Opinião Pública, realizada entre os dias 28 de março e 3 de abril, aponta que 74% dos russos de diferentes nacionalidades (cazaques, uzbeques, georgianos etc.) que vivem na Rússia apoiam a decisão do governo de intervir militarmente no país vizinho.
O mesmo levantamento traz outros dados que refutam completamente os contos da carochinha disseminados pelos jornais internacionais: 81,6% confiam no presidente Vladimir Putin, 89% têm confiança no exército russo, 88% não querem emigrar do país para residência permanente, 87% dizem que dentre seus amigos, colegas e familiares não conhecem ninguém que foi embora do país. E, por último: 90% dos russos acreditam que uma guerra de informação está sendo travada contra eles. Esse é o instituto de pesquisas mais renomado do país.
Um outro importante instituto, o Centro Levada, aponta que “um a cada dez russos gostaria de se mudar para o estrangeiro para obter a residência permanente”, mas que “no contexto do conflito com o Ocidente, houve uma diminuição no sentimento de emigração, que é semelhante a como se desenvolveu o sentimento em 2014” ─ ano do golpe na Ucrânia, da agressão de Kiev ao Donbass e da anexação russa da Crimeia. Ou seja, o enfrentamento ao imperialismo, que busca sufocar os russos, os tornou mais nacionalistas. Outra pesquisa do Levada, realizada no final de março, mostrou que 83% da população “aprova as atividades do presidente”, 71% as do primeiro-ministro, 70% as do governo em geral e 59% as do parlamento.
Em frente à entrada do prédio da Duma Estatal, o parlamento russo, encontramos uma figura que nos chama a atenção. Um manifestante parado, sozinho, com uma placa onde se lê algo como “eu apoio o nosso presidente, e você?” com o rosto de Putin, e uma bandeira reproduzindo a Fita de São Jorge (símbolo da vitória na II Guerra Mundial), que é também a bandeira de sua organização, o Movimento de Libertação Nacional. Ele está lá o dia todo, visto por todos os deputados que entram e saem do prédio ─ ao contrário do Brasil, localizado no centro da capital, onde qualquer cidadão pode “tietar” ou “escrachar” o seu alvo, pois a entrada é igual à de qualquer edifício.
─ Apoio Putin porque ele trouxe novamente a soberania para o povo russo depois que assumiu a presidência no ano 2000, diz Serguei. Ele também defende a volta da União Soviética com o mesmo território que tinha após o final da II Guerra Mundial. Sobre o imperialismo, ele opina: “os EUA são um país parasita.”
Uma outra placa, encostada na calçada, em frente a ele, também assinada pelo MLN, denuncia o sistema imperialista: “Há uma guerra contra a Rússia. […] Os organismos internacionais pró-americanos continuam a nos controlar: a Organização Mundial da Saúde, o Fundo Monetário Internacional e outros.”
Putin também é uma marca nas lojas da Arbatskaya. E está na moda. Assim como o Z, ou como símbolos da era soviética, o presidente russo estampa camisetas, bandeiras, bonés, chaveiros, matrioskas, pratos, ímãs de geladeira, canecas e muitos outros produtos. E não, essas lojas não pertencem ao governo, nem a familiares de Putin, nem ao seu partido Rússia Unida, nem nada. São lojas comuns. No Brasil, mesmo com a enorme popularidade de Lula em seus governos ou agora, nunca vi nada parecido. Tampouco com Bolsonaro ou qualquer outro político que, sabemos, tem um apoio contundente de uma parcela significativa do eleitorado. Podemos comparar os produtos referentes a Putin com os que temos no Brasil referentes a clubes de futebol. Os clubes com mais produtos nas prateleiras das lojas são os mais populares, logicamente, cuja probabilidade de vendas é maior. E Putin vende muito, porque, como está muito claro para mim, com todas essas evidências, ele é muito popular. Até mesmo os que não concordam com seu governo o admitem, como contei em uma crônica anterior.
Conversando com os participantes do Comitê Russo de Cooperação com a América Latina, percebo que diferentes setores da esquerda russa não-partidária estão unidos pela defesa da Rússia contra o imperialismo, apoiam Putin e suas ações na Ucrânia. Ao mesmo, tempo, fazem questão de lembrar que não têm absolutamente nada contra o povo ucraniano, o qual veem como um povo irmão.
─ No entanto, ao longo de 30 anos, foi sendo fomentado um sentimento anti-russo na Ucrânia, que se aprofundou e se radicalizou com a instauração do regime atual, fruto do golpe de 2014, nos dizem Tatiana ─ uma senhora muito bem-humorada que faz parte do instituto desde a década de 1970 e que era amiga pessoal de Luís Carlos Prestes durante o tempo em que este se exilou na URSS ─ e Pablo, um venezuelano que há anos vive na Rússia.
Segundo eles, prevalece na Ucrânia, infelizmente, esse sentimento russófobo, que é expresso nas cenas de tortura a céu aberto contra ucranianos de origem russa, presos a postes, nus, em temperaturas negativas, ou, principalmente, no massacre perpetrado pelo exército ucraniano contra civis do Donbass, a maioria dos quais é de etnia russa e apoia a Rússia.
Em Moscou, no entanto, também há russos que pensam diferente da maioria. Em uma rua ao lado da antiga fábrica de Elektrozavod, vejo pichada a frase “Morte ao tirano” em um muro.
─ Não acho que seja exatamente assim, me diz uma jovem transeunte na Rua Arbatskaya, a quem eu abordo para perguntar se fala inglês e se poderia traduzir para mim o que estava escrito em um dos painéis de uma exposição fotográfica a qual consegui perceber que tratava sobre a situação do Donbass e era promovida pelo Ministério da Defesa da Rússia, graças ao meu único conhecimento (se é que podemos dizer assim) do russo, que é a transliteração do alfabeto cirílico para o latino.
A exposição mostrava fotos de crianças sobreviventes, até o momento, dos intensos bombardeios das forças ucranianas contra a região, que declarou independência da Ucrânia em 2014 e criou as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. A moça quase não falava inglês, mas a induzi a dizer o que estava tentando falar: acredita que aquela exposição era mais uma espécie de forçação de barra, de propaganda governamental.
Não há dúvida nenhuma que existe muita propaganda do governo para apresentar como positiva a operação iniciada em 24 de fevereiro. Assim como o governo ucraniano faz propaganda de que a sua ação é positiva ─ apoiada por todo o aparato governamental e paragovernamental dos países imperialistas, como as empresas e a imprensa. Cada um vende seu peixe. Mas é muito perceptível que a maioria dos russos, ao contrário do que podem pensar aqueles que se guiam pela campanha de desinformação dos meios de comunicação internacionais, não são ignorantes com o cérebro lavado pela “máquina de mentiras” de Putin ─ como acusa a imprensa estrangeira, essa sim uma verdadeira máquina de mentiras.
Ainda conforme o Centro Levada, em outro levantamento, 68% dos russos acessam a Internet diariamente, muito embora em março um quarto da população tenha sido impedida de acessar os seus serviços digitais habituais, devido ao bloqueio criminoso imposto pelo Twitter, Youtube (que, dizem alguns, deverá fechar em breve totalmente o acesso ao público russo) e outras plataformas. A solução para manter o consumo e a produção de conteúdo nessas redes é o uso de VPN, do qual um quarto dos entrevistados é adepto ─ ou 50% entre os russos de 18 a 24 anos.
Mesmo assim, a TV continua sendo o veículo de informação mais popular. Em Moscou, me diz Kostia, há 45 canais abertos, gratuitos, sendo apenas 5 de propriedade estatal. Isto é, uma ínfima minoria poderia ser considerada “propaganda do governo”. Definitivamente, o povo russo, devido a toda a sua história de opressão e resistência ao imperialismo, cujo evento mais exemplar dessa luta foi a Revolução de Outubro de 1917 e a construção do primeiro estado operário da história, é um povo consciente do momento atual. Um povo que sabe discernir quem é seu inimigo principal e que tem a iniciativa de combatê-lo.