Uma questão tem encafifado jornalistas e ativistas dos movimentos LGBT, todos entusiasmados com a eleição do primeiro governador gay assumido do Brasil: afinal, o namorado do BolsoLeite deve ser chamado de “primeiro-cavalheiro”? Tirante o seu caráter bizantino, a discussão ilustra o curto alcance das reivindicações identitárias e, sobretudo, a sua contribuição para a deseducação política.
Os ativistas estão escrutinando dicionários e já reivindicam dos lexicógrafos que introduzam a novidade nas obras de referência, porque, afinal, a inclusão do novo verbete seria uma vitória na luta pelo reconhecimento da presença do homossexual em “posições de poder”. Como esse discurso se repete a todo momento, talvez não tenham parado para pensar no ridículo da reivindicação.
Homens heterossexuais casados com mulheres que assumiram o poder – caso do marido de Angela Merckel, por exemplo – não costumam assumir tarefas no cerimonial do palácio de governo nem mesmo a liderança de projetos assistencialistas, atividades geralmente atribuídas às “primeiras-damas”. A palavra não tem, até agora, o correspondente masculino porque designa uma posição feminina “decorativa” e, naturalmente, subalterna, quase como se fosse a de uma “dona de casa oficial”.
Causa estranheza, portanto, que, no bojo de uma luta política, um homem, só por ser homossexual, almeje para si esse lugar. É mais ou menos como se ele lutasse pelo direito de casar-se na Igreja Católica usando o vestido branco, com véu e grinalda. O protótipo da primeira-dama é a mulher de Michel Temer, que ele mesmo definiu como “bela, recatada e do lar”.
Por outro lado, há rumores de que Lula vá nomear Janja, a esposa, para algum cargo ou ministério, dando-lhe atribuições que vão além das tarefas domésticas do palácio e da caridade. Uma mulher emancipada pode fazer mais que isso, certo? A propósito, foi o PT que elegeu uma mulher pela primeira vez no Brasil para o cargo de presidente, e, na época, a imprensa, que hoje é tão antenada com o feminismo identitário, recusou-se em bloco a usar o termo “presidenta”, dicionarizado desde o século XIX.
As reivindicações dos identitários se resumem à sua inclusão formal na institucionalidade. Não questionam as instituições tais quais elas são, apenas querem ser reconhecidos por elas. Nesse sentido, sua política é muito conservadora. O ativista não quer apenas chamar o namorado do Leite de primeiro-cavalheiro (ou primeiro-marido, ou, quem sabe, “primeiro-damo” para garantir a equivalência formal do termo com o correspondente feminino) – o que pode fazer, pois (ainda) não é proibido –, mas ele quer que a palavra entre no dicionário, porque isso a “institucionaliza”.
Esse tipo de ativismo é a festa dos publicitários. Um fabricante de açúcar resolveu lançar uma campanha para a mudança dos nomes dos doces que são “ofensivos às mulheres”. Certo doce, cujo nome popular dizem ser “teta de nega” (sem registro em dicionários), deve ser rebatizado, assumindo a moderna alcunha de “chocomellow”; da mesma forma, “espera-marido” e “maria-mole”, por seu “caráter ofensivo”, devem ser substituídos por nomes escolhidos pelo público.
Enquanto os identitários se distraem com essas coisas, perscrutando nelas algum valor político, a empresa vende mais açúcar, e a institucionalidade burguesa se torna cada vez mais opressora, a ponto de, a pretexto de salvaguardar a democracia, fazer ressuscitar o vocabulário dos regimes de exceção, que condenavam indivíduos por serem “arruaceiros”, “baderneiros” ou “subversivos”. Esses identitários “coxinhas” não questionam nada, não subvertem, não fazem bagunça nem arruaça. Não à toa são bem-aceitos pela burguesia, que dá corda para essas questões bizantinas enquanto faz a sua boiada passar.