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Nelson Rodrigues

O grande sol do escrete

"Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é grande. Mas nós somos maiores, porque somos Brasil, imensamente Brasil, eternamente Brasil"

Nelson Rodrigues, um dos maiores cronistas esportivos da história do futebol brasileiro, nunca escondeu a sua admiração por Pelé. Afinal, ele foi o melhor jogador de toda a história do esporte, simplesmente insuperável. Nesse sentido, dedicou uma série de crônicas ao Rei e, na que reproduzimos logo abaixo, intitulada O grande sol do escrete, Rodrigues defende Pelé e faz questão de deixar claro que ele é, indiscutivelmente, o melhor do mundo.

Disse Rilke que a glória, o que chamamos glória, é a soma de mal-entendidos em torno de
um homem e de uma obra. E não só a glória. Também a desonra pode ser outra soma de malentendidos. Qualquer um de nós já amou errado, já odiou errado. Eu próprio, certa vez,
desprezei um homem, tive por esse homem a maior náusea ética. Não podia vê-lo sem que
minha úlcera desse pulinhos de rã. Sem fazer segredo do meu horror, chamei-o, em público,
de cadáver moral.

Eu teria, na ocasião, 17 anos. E o adolescente vive de falsos horrores. Tempos depois,
verifiquei que estava errado, errado de alto a baixo. O homem que eu supunha infame era, na
verdade, uma dessas nobilíssimas figuras exemplares, um falso defunto moral. Quase um
santo.

Eis o que eu queria dizer: — dedico esta crônica aos equívocos que, em certos casos,
inauguram a estátua e, em outros, desencadeiam a vaia. Começarei falando de Pelé, o divino
crioulo.

Muitíssimas vezes, Pelé foi estátua e, muitíssimas vezes, foi vaia. Eu me lembro de um
jogo do escrete em que jogou mal ou, como diz a gíria, jogou pedrinhas. E, no fim de certo
tempo, explodia a ira da multidão. No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia.
Não sei se todos se lembram de um fato muito curioso. Num jogo Brasil x Inglaterra, aqui, no
ex-Maracanã, ao ser anunciado o nome de Julinho, todo o estádio vaiou. Mas começa o jogo.
Julinho fez uma série de jogadas perfeitas, irretocáveis. Em dez minutos, o que era humilhação
passou a ser apoteose. E assim Julinho teve a fulminante reabilitação.

Volto a Pelé. Repito que, naquela tarde, ele foi pouquíssimo Pelé. E, então, começou a
fúria popular. A ninguém ocorria que o supercraque não precisa jogar bem. O perna de pau é
que tem de se matar em campo. De mais a mais, o gênio pode ter as suas nostalgias da burrice.
Em outro plano, Sartre, o grande Sartre, andou por aqui e disse coisas de que se envergonharia
Luvizaro. Podia dizê-las, porque era Sartre. Por exemplo, afirmou o grande homem: — “O
marxismo é inultrapassável”. O já citado Luvizaro não diria isso. Ele sabe que, daqui a quinze
minutos, o marxismo pode estar ultrapassado por coisa muito melhor. Mas o que sabe
Luvizaro Sartre pode ignorar, porque é Sartre.

E, em qualquer clássico ou pelada, Pelé pode fazer tudo, porque é Pelé. Se abrir a Revista
do Rádio22 no meio do campo, estará usando um dos privilégios do gênio. Mas a multidão não
perdoa, em Pelé, um passe errado. Se vinha o adversário e frustrava o seu drible, Pelé era
quase apedrejado como uma adúltera bíblica. Éramos, ao todo, umas 150 mil pessoas. E
dizíamos, uns aos outros, que Pelé já não era o mesmo. Houve um, mais afoito, que declarou:
— “Pelé está morto.”

Ninguém protestou. Ou por outra, houve, sim, um protesto. Estava lá o Manoel Duque, que
reagiu e gritou: — “Pelé continua sendo o maior jogador do mundo.” E, como um outro
resmungasse, o Duque repetia: — “O maior jogador do mundo, em todos os tempos.” Mas,
como ia dizendo: — vaiaram Pelé os noventa minutos. Posso dizer que influiu na vaia, além
do mais, um certo cansaço, um certo tédio do mito. A multidão precisa destruir os mitos que
promove.

A partir de então, não só o homem de arquibancada, também os “entendidos”, também os
técnicos, também os cronistas começaram a meter a picareta na estátua de Pelé. Tem sido uma
alegre demolição. O crioulo passou a ser o responsável por todos os males que afligiam a
seleção. Fui a um sarau de grã-finos e lá ouvi alguém jurar: — “Pelé morreu para o futebol.”

Chegou a correr a notícia de que seria barrado do escrete e do Santos. Ou por outra: — do
Santos, não, porque seu nome ainda é bilheteria. Cheguei a imaginar que, humilhado, ofendido,
ele próprio saísse da seleção. Mas diz a minha vizinha gorda e patusca: — “Nada como um
dia depois do outro.”

Já na classificação, Pelé teve momentos de Pelé. Mas insistíamos, obsessivamente: —
“Não é o mesmo! Não é o mesmo!” E, para todo mundo, menos o Manoel Duque, já deixara de
ser o maior jogador do mundo. Duque vivia repetindo: — “Mesmo jogando a metade do que
sabe, ainda é o maior.” Até que chegou a primeira partida do Brasil, na Copa contra os
tchecos. Ora, segundo todos os críticos de futebol, a Tchecoslováquia era um dos mais
formidáveis concorrentes ao título mundial. Enquanto o Brasil se preparava em quinze dias,
ela se cuidou durante quatro anos. Era assim uma potência da Jules Rimet.

Desde os primeiros momentos sentiu-se que o Rei era um falso defunto do futebol ou, mais
do que isso, um salubérrimo defunto, a explodir de saúde. Aliás, recuando um pouco, eu
poderia falar do jogo recente, aqui, no Mário Filho, contra a Áustria, onde Pelé foi
maravilhosamente Pelé. Mas o que importa, de momento, é a nossa estreia de quarta-feira.
Foi, em primeiro lugar, um homem isento de idade, isento de tempo, com uma vitalidade de 17
anos. Defendeu e atacou, estava em todas as posições ao mesmo tempo. Inventou jogadas que
nenhum outro jogador faria, em qualquer tempo.

Foi no primeiro tempo? Não: — no segundo. Exatamente, no segundo tempo. l x l ainda no
marcador. Recomeça a partida e Pelé estava ainda no campo brasileiro. Apanha a bola. E,
súbito, recebe a visita do próprio gênio. Viu que o goleiro tcheco estava fora de posição,
muito adiantado. Fez, então, o que não ocorreria a ninguém. De onde estava, deu um
prodigioso tiro de cobertura. A TV, que não sabe fantasiar e tem o escrúpulo da mais exata
veracidade, descreveu-nos o lance.

A câmera, numa tomada por trás do gol, mostra toda a curva implacável da bola. Por um
momento, ninguém entendeu. Por que Pelé não passou? Por que atirava de tão espantosa
distância? E o goleiro custou a perceber que era ele a vítima. Seu horror teve qualquer coisa
de cômico. Pôs-se a correr, em pânico. De vez em quando, parava e olhava. Lá vinha a bola.
Parecia uma cena d’Os três patetas. E, por um fio, não entra o mais fantástico gol de todas as
Copas passadas, presentes e futuras. Os tchecos parados, os brasileiros parados, os mexicanos
parados — viram a bola tirar o maior fino da trave. Foi um cínico e deslavado milagre não ter
se consumado esse gol tão merecido. Aquele foi, sim, um momento de eternidade do futebol.

Pelé nunca foi tão alto no seu gênio. Mas por que fez isso? Simplesmente, ali o Rei se
vingava das nossas vaias. E não só ele: — também o escrete, todo o escrete. Bem sei que as
hienas da crônica ainda uivam contra a defesa. “Há falhas, há falhas”, rosnam as hienas (nas
minhas crônicas as hienas rosnam). Lendo certos colegas, eu penso num velho episódio.
Estava eu em Teresópolis, num edifício de apartamentos. Desci com a cachorrinha. Fazia uma
diáfana manhã parnasiana, de um azul de soneto. No jardim, eu tremia. E, de repente, lá da
janela, um vizinho pôs-se a esbravejar. Sabem por quê? Porque a cadelinha acabara de sujar o
gramado. E, então, o sujeito achou que a porcaria mínima era mais importante, mais
transcendente do que o céu, a floresta, a luz, as fontes, os pássaros. Assim fazem os cronistas
que esquecem uma exibição deslumbrante para catar falhinhas que têm, cada uma, o tamanho
de uma pulga.

Amanhã jogaremos com a Inglaterra. Eu sei que a Inglaterra é grande. Mas nós somos
maiores, porque somos Brasil, imensamente Brasil, eternamente Brasil.

Nelson Rodrigues – O Globo, 06/06/1970

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