O artigo publicado no dia 27/11 no sítio Esquerda Diário, órgão do grupo MRT, assinado por Patrícia Galvão e intitulado “Política versus Fifa – a Copa mais cara de todos os tempos não consegue barrar a luta dos oprimidos” repete a mesma cantilena imperialista que quase toda a esquerda pequeno-burguesa repete sem nenhum espírito crítico.
Segundo a autora do artigo, a Copa do Mundo e a FIFA não conseguiram esconder o que ela chama de “luta dos oprimidos”. A afirmação é bem interessante quando, ao ler o artigo, descobrimos de que luta e de quais oprimidos ela está falando.
O início da matéria tenta mostrar para o leitor as atrocidades realizadas pela monarquia do Catar. Para isso, repete a informação sobre a superexploração dos trabalhadores imigrantes e as supostas 6.500 mortes de trabalhadores nas obras, segundo informações divulgadas pelo jornal imperialista britânico The Guardian. É muito curioso que a autora do artigo cite pelo menos três vezes na matéria essa informação dada por um jornal imperialista e, ao mesmo tempo, tente mostrar que haveria uma tentativa de esconder as supostas atrocidades no Catar. A informação, diga-se de passagem, já foi desmentida e esclarecida, mas a autora prefere acreditar no jornal britânico.
Outra atrocidade do governo do Catar seria o tratamento dado às mulheres. Sobre isso, vale a pena, perdoe-nos o leitor, deixar que a própria autora fale:
“O governo do Catar patrocinou viagens de jornalistas mulheres ao país para que pudessem ver com seus próprios olhos a real situação das mulheres no país. Em reportagem do Uol, uma funcionária do governo afirma que homens e mulheres ganham o mesmo salário, que elas podem trabalhar livremente e que sua equipe é composta por metade de mulheres. O logotipo da copa, inclusive, foi criado por uma artista feminina. Bastante progressista, se fosse verdade. Nas ruas é possível ver mulheres catarenses com o hijab colorido cobrindo apenas os cabelos ou toda de preto, cobrindo o rosto, ou seja, mais ‘liberais progressistas’ ou conservadoras.
Mas o uso ou não do véu não é o centro da questão da mulher no Catar, mas o grau de independência da mulher perante ao patriarca, seja o pai, o marido ou o próprio estado. No Catar, impera o sistema de guarda masculina de mulheres, ou tutela masculina, o que críticos definiram como “ser menor de idade a vida inteira”. Ou seja, as mulheres precisam de autorização expressa pelo guardião, pai, irmão, tio ou marido, para poderem estudar, ingressar em uma universidade, trabalhar, casar ou se divorciar. Como não se trata de uma lei escrita, mas uma orientação baseada na lei islâmica, o grau individual de liberdade depende da orientação religiosa mais ou menos conservadora, o que permite ao governo lavar a própria cara se apoiando nos setores mais liberais, e propagandeando para o exterior a modernidade do estado”
A autora quer provar que o governo do Catar é uma ditadura sanguinária, mas ao fazer isso, acaba se traindo. Ela não desmente a informação de que os salários entre homens e mulheres são iguais, nem a de que as mulheres são livres para trabalhar, nem que a equipe é composta por metade de mulheres, nem a informação de que foi uma mulher que fez o logotipo da Copa. Ela não desmente nada com provas e fatos contrários, ela limita-se a dar a opinião dela de que tudo “é mentira”.
E qual é o argumento para mostrar a “mentira” do governo do Catar sobre as mulheres? É que nas ruas se vê mulheres vestindo o hijab cobrindo o cabelo ou o rosto. E vejam que coisa, a própria autora afirma que o problema mais grave, então, não seria o uso do hijab, mas a dependência das mulheres diante dos homens. O ingênuo leitor, ávido por informações, espera então que a nossa militante feminista autora da matéria revele a feroz face da cruel ditadura do governo do Catar contra as mulheres. Mas essa revelação não vem. A autora, novamente, se trai: “não se trata de uma lei escrita, mas uma orientação baseada na lei islâmica, o grau individual de liberdade depende da orientação religiosa mais ou menos conservadora”.
Descobrimos, ao lermos a matéria do MRT, que a ditadura sanguinária do Catar não é tão sanguinária assim. E mais, a posição da autora do artigo é, no fim das contas, um artigo preconceituoso, já que está criticando como grande ditadura algo que depende da cultura local.
Logicamente que nós não defendemos nada que esteja direcionado contra as mulheres, mas ao mesmo tempo não nos cabe obrigar ninguém a viver conforme o padrão que nós estabelecemos como correto. É interessante que em determinado momento do artigo a autora afirma que “é preciso estar atento a essa lógica para fugir do discurso xenófobo mais conservador que repudia o outro para impor uma norma padrão eurocêntrica elitista e que não olha o próprio umbigo ao criticar uma cultura diferente.” Parece muito claro que é exatamente o que ela faz nesse artigo a pretexto de criticar o governo do Catar.
Voltemos ao tema central da matéria do MRT que é a “luta dos oprimidos”, vejamos o que ela considera como sendo “os oprimidos”:
“Neste ano, diversas seleções europeias anunciaram que seus capitães usariam uma braçadeira com o arco-íris, símbolo LGBTQIA+ com os escritos One Love. No entanto, sob ameaça de cartão amarelo, retrocederam da ação. Isso não impediu, porém, outras manifestações como a seleção da Inglaterra de se ajoelhar durante a execução do hino nacional, repetindo o símbolo de luta antirracista do Black Lives Matter. A seleção alemã tapou a boca durante seu hino, simbolizando a censura. O grande gesto dos Panteras Negras eternizado pelo punho erguido de Tommie Smith e John Carlos de 1968 continua a reverberar décadas depois e ganhou novo fôlego com o movimento Black Lives Matter.”
Vejam só quem representa a luta dos oprimidos para a redatora do MRT: as seleções europeias! O que será que passa pela cabeça da autora quando ela diz “seleções europeias”? Claramente, ela não tem a menor ideia do que se trata. Ela, que no mesmo artigo demonstra total desprezo pelo esporte mais popular e proletário do mundo dizendo que “o futebol é por excelência um esporte masculino e homofóbico”, deve achar que as seleções da Europa são compostas por ativistas LGBTs, social-ecológicos e defensores das tartarugas marinhas.
A autora simplesmente ignora que essas seleções são comandadas por federações poderosas dos países imperialistas, que essas federações são patrocinadas pelos maiores monopólios imperialistas europeus e vinculadas umbilicalmente com os governos desses países, que mandam suas forças armadas bombardearem justamente nações como o Catar. É de lá, da Europa, que vieram esses protestos. São protestos guiados pelo imperialismo. A FIFA tentou impedir os protestos pelas contradições econômicas e políticas que existem entre os diferentes interesses imperialistas. Mas daí a dizer que esses protestos sofreram uma dura tentativa de censura e que bravamente conseguiram furar essa censura é uma falsificação da realidade. Os jornais imperialistas no mundo todo mostraram esses protestos que o MRT diz que são “protestos dos oprimidos”.
Exceto se considerarmos que os países imperialistas passaram a ser oprimidos, e países como o Catar ou o Irã passaram a ser opressores (embora talvez ela considere isso mesmo, pois diz que o Catar é “o quarto país mais rico” do mundo), é puro surrealismo dizer que foram os protestos foram a “luta dos oprimidos”.
A comparação com o gesto dos Panteras Negras protagonizado por Tommie Smith e John Carlos nas Olimpíadas 1968 é completamente indevida e até desrespeitosa. Ali, não havia apoio do imperialismo, pelo contrário, os dois foram perseguidos e perderam as medalhas por defenderem uma política que estava completamente em contraposição ao imperialismo. A política dos Panteras Negras era revolucionária nos Estados Unidos e foi brutalmente reprimida.
Por fim, a autora parece mesmo viver em outro mundo. Ela afirma que o imperialismo “fecha os olhos para as atrocidades nos países aliados aos seus interesses e denunciam espumando pela boca os abusos dos países que se opõem aos seus objetivos econômicos. A FIFA segue essa lógica, assim como os Estados Unidos, França, Inglaterra e por aí vai.”
A autora do MRT não percebeu que o imperialismo fecha os olhos para as arbitrariedades dos países aliados e dentro dos seus próprios países, mas faze propaganda contra os países inimigos, como o Catar ─ aliado de Rússia e China e um dos maiores produtores de gás e petróleo ─ explorados pelo Estado, e não pelos monopólios imperialistas. E essa campanha é repetida pelo MRT.