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Democracia é isso

Lugansk está sob controle operário

País é governado por um Conselho do Povo unicameral, com amplos direitos democráticos, a privatização é proibida e os sindicatos têm um enorme poder constitucional

_ Rafael Dantas, de Lugansk

Natalya Vladimirovna Sergun é presidente do sindicato dos ferroviários e deputada do Conselho do Povo (”soviete“, seu Parlamento) da República Popular de Lugansk (RPL). Estava de saída da sede da Federação dos Sindicatos de Lugansk, acompanhada pelo diretor da Federação, Andrei Kochetov, quando a encontramos. Ela gentilmente cedeu a entrevista ali mesmo, na própria sede da Federação.

Sergun trabalha há 20 anos como ferroviária. Em 2018, candidatou-se à presidência da RPL, mas não conseguiu se eleger. Sua plataforma era o desenvolvimento da produção industrial. Foi eleita deputada para o Conselho do Povo pela lista “União Econômica de Lugansk”. Hoje, encabeça o comitê do Conselho do Povo (Soviete) para as questões da indústria, agricultura, construção, habitação, serviços comunitários de infraestrutura, transporte, combustíveis e energia. É uma pauta extensa, mas em grande medida porque se trata de um governo com um reduzido número de funcionários. 

O Soviete é composto por 50 deputados e tem apenas sete comissões como esta, com algo entre cinco e nove deputados, para dar resposta aos problemas da República. A representatividade, como órgão legislativo supremo, por sua vez, é grande: um deputado para cada 30.000 habitantes (no Brasil, a proporção é de um para mais de 414.000).

A categoria dos trabalhadores ferroviários é a mais importante na República, com 4.500 operários. O número de trabalhadores em sua base cresce a cada dia na medida que novos territórios vêm sendo liberados das mãos dos fascistas ucranianos com o avanço da Operação Especial para a Desmilitarização e Desnazificação da Ucrânia iniciada pelo governo da Federação Russa em fins de fevereiro. Só no último mês, o sindicato dos ferroviários ganhou 500 novos membros com a retomada dos territórios ao Norte da RPL.

Por meio do depoimento de Natalya Sergun, ficamos sabendo como é o dia-a-dia de um sindicalista e representante parlamentar na RPL.

Considerada pelo serviço de inteligência ucraniano como uma figura que, juntamente com outros separatistas, atenta contra a segurança nacional da Ucrânia, a paz, a segurança da humanidade e a lei e a ordem internacionais, o escritório da deputada-sindicalista está localizado na maior estação ferroviária da República. Ela recebe diariamente trabalhadores e cidadãos.

Um governo operário

A República Popular de Lugansk possui um governo democrático, com representantes eleitos por local de trabalho e moradia, uma forma de representação direta da população. Trata-se de um governo operário, ao estilo do da Comuna de Paris de 1871. Embora o país não tenha nenhuma lei propriamente socialista, o poder em Lugansk é um verdadeiro poder popular, principalmente operário, apoiado no povo armado, que administra a produção, caracteriza a região como dirigida por um governo operário.

Os mais de 130 partidos do antigo regime foram proibidos com a independência em 2014. Deixaram de ser o único meio de acesso ao Estado. A proibição, no entanto, não possui um caráter repressivo. Consiste em que ninguém é eleito pelo partido, mas pelas bases, nos locais de trabalho e moradia. 

Não há uma burguesia propriamente dita, o governo não responde aos interesses dos capitalistas.

Uma parte muito significativa, quase a maioria da população masculina, foi recrutada para participar da milícia popular, que são as pessoas que têm resistido ao ataque dos nazistas em algumas regiões. Essa milícia é composta, em grande medida, de operários.

Pela situação que se criou com o golpe de Estado de 2014 e a reação da população local, Lugansk e a Donetsk se constituíram em duas repúblicas que são verdadeiros governos operários.

O Conselho que controla a região se chama Soviete Popular, a palavra russa para Conselho do Povo. Logicamente isso vem de uma tradição muito antiga, da antiga União Soviética, da Revolução Russa, amplamente conhecida pelo povo.

Por quê? Porque o que houve no Donbass oito anos atrás foi uma verdadeira revolução: o povo se armou para se defender, toma conta da administração do Estado, da economia, e toma todas as medidas de defesa da população. 

A história da formação das repúblicas populares tem como ponto de partida a situação que escapou de controle, tanto do governo russo, quanto dos ucranianos, com o golpe de Estado de 2014. Se, na Ucrânia, houvesse um partido político de esquerda sério, que chamasse o povo a resistir, a se armar, a situação poderia ter transbordado em todo o território ucraniano. A esquerda ucraniana e a população russa foram pegas de surpresa pelo golpe de 2014. Não conseguiram reagir imediatamente, mas apenas depois que o golpe se consumou. 

A reação ao golpe de Estado no Donbass foi intensa, rápida e decidida justamente porque uma parcela majoritária da população é de operários industriais. A diferença dos acontecimentos mostra o caráter profundamente revolucionário da própria classe operária.

O fato de que o governo não tenha tomado a decisão de acabar com toda a propriedade privada não impede de caracterizar o governo como um governo operário. 

O que confirma o fato ainda é que isso foi feito pela própria população, sem nenhum tipo de orientação política mais ideológica de um partido revolucionário. Isso foi facilitado porque o capitalismo, em todas as antigas repúblicas soviéticas, é um capitalismo artificial, sui generis. No momento de crise, em que a população se defendeu, a burguesia fugiu. A Revolução Russa, apesar de todos os revezes, continua bem presente na Rússia. 

Não são grupos nacionalistas que teriam um viés de direita ou extrema direita. Não há hostilidade contra os ucranianos. É um movimento espontâneo do povo, dos trabalhadores. É o que acontece em uma revolução, quando o povo e os trabalhadores são levados a uma situação extrema. O resultado pode ser facilmente comprovado com o que se encontra na legislação da República.

As leis de uma república popular

Com apenas 10 capítulos e 86 artigos, a Constituição da República Popular de Lugansk parte da experiência do regime soviético derrubado nos anos 1990. É enxuta e direta, ao contrário da Constituição brasileira de 1988, com seus 250 artigos, 1.600 provisões legais e quase 120 emendas que fazem dela o segundo maior texto constitucional do planeta depois do da Índia.

A República conta com um Poder Executivo composto por um presidente, que atua como chefe de Estado (Leonid Pasechnik), e um primeiro-ministro (Sergey Mozlov), além do Soviete (presidido por Denis Miroshnichenko). Ela se define como um “Estado social” (artigo 1º) e entre suas bases constitucionais está o exercício do poder pelo povo “diretamente bem como por meio das autoridades estatais e órgãos de autogoverno locais” (art. 2º). 

O objetivo da “política social” da República é “criar condições que garantam uma vida decente e o livre desenvolvimento da pessoa, do seu bem-estar e da disponibilidade dos benefícios materiais, morais e espirituais elementares” (art. 4º).

A terra pertence ao povo

A estatização da terra (art. 5º) é um dos princípios constitucionais mais importantes. “A terra e outros recursos naturais da República Popular de Lugansk são propriedade do povo e usados e protegidos como base da vida e das atividades do povo” (parágrafo 2). Seu uso é definido pela lei (p. 3) . “A venda de terras é proibida” (p. 4).

Além disso, “a atividade econômica dirigida ao monopólio e à competição desleal não é permitida” (art. 27).

Controle operário

Segundo a Constituição, “todos têm o direito de trabalhar em condições que atendam aos requisitos de segurança e higiene, à remuneração pelo trabalho sem discriminação e não inferior ao mínimo estabelecido por lei, e ao direito à proteção contra o desemprego” (art. 30, p. 3).

“O direito à disputa individual e coletiva é reconhecido pela lei, inclusive o direito de greve”, diz o parágrafo 4.

A lei específica dos sindicatos, por sua vez, reza que: 

“Os sindicatos têm o direito de participar na resolução de conflitos coletivos de trabalho, têm o direito de organizar e realizar greves, reuniões, comícios, marchas de rua, manifestações, piquetes e outras ações coletivas de acordo com a lei da República Popular de Lugansk , utilizando-os como meio de proteção dos direitos sociais e trabalhistas e dos interesses dos trabalhadores.

“Os sindicatos têm o direito de criar inspeções legais e técnicas do trabalho para fiscalizar o cumprimento por empregadores, funcionários da legislação trabalhista, inclusive em questões de contrato de trabalho, horas de trabalho e descanso, remuneração, garantias e compensações, benefícios e benefícios, criação de condições de trabalho seguras e inofensivas, condições produtivas e sanitárias adequadas, fornecendo aos trabalhadores macacões, calçados de segurança, outros meios de proteção individual e coletiva, bem como sobre outras questões sociais e trabalhistas nas organizações em que trabalham membros deste sindicato, e têm o direito de exigir a eliminação das violações identificadas.

“Se o acordo coletivo não for celebrado, o empregador é obrigado a coordenar essas questões com o órgão sindical. Ao mesmo tempo, as disposições do acordo do setor têm efeito direto.

“Os empregadores e funcionários são obrigados a informar o sindicato sobre os resultados de sua consideração e as medidas tomadas dentro de uma semana a partir da data de recebimento do pedido para eliminar as violações identificadas.

“Os sindicatos, no exercício dessas competências, interagem com os órgãos estatais de fiscalização e controle do cumprimento da legislação trabalhista.”

Sem desabrigados

A lei que protege a moradia diz que “Todos têm direito à moradia. Ninguém pode ser privado de casa, salvo nos casos previstos na lei.”

“2. As autoridades estatais e as autarquias locais incentivam a construção de habitação, criam condições para o exercício do direito à habitação.

“3. Aos pobres, demais cidadãos especificados na lei que necessitem de habitação, a mesma é fornecida gratuitamente ou a preço acessível de fundos estaduais, municipais e outros fundos habitacionais de acordo com as normas estabelecidas por lei.”

Saúde pública estatal

“1. Todos têm direito a cuidados de saúde e cuidados médicos. A assistência médica em instituições de saúde estaduais e municipais é fornecida gratuitamente aos cidadãos às custas do orçamento relevante, prêmios de seguro e outras receitas.

“2. Os programas de proteção e promoção da saúde pública são financiados na República Popular de Lugansk, são tomadas medidas para desenvolver sistemas de saúde estaduais, municipais e privados e atividades que promovem a saúde humana, o desenvolvimento da cultura física e do esporte e o meio ambiente e o bem-estar sanitário e epidemiológico são incentivados.

“3. A ocultação pelos funcionários de factos e circunstâncias que ponham em perigo a vida e a saúde das pessoas implica responsabilidade nos termos da lei.”

Educação pública e estatal

“1. Todos têm direito à educação.

“2. Na República Popular de Lugansk, a educação pré-escolar, básica geral e secundária profissional é garantida como de acesso geral e gratuita em instituições e empresas educacionais estaduais ou municipais.

“3. Todas as pessoas têm direito, em regime de concurso, a receber gratuitamente o primeiro ensino superior em estabelecimento de ensino estadual ou municipal e em empresa.”

A milícia popular democrática

Uma das leis que mais chama a atenção estabelece como se dá a participação do povo nas forças armadas de Lugansk, a sua Milícia Popular. O contraste com o regime autoritário das repúblicas “democráticas” é evidente. Em Lugansk, o cidadão “caso suas convicções ou religião sejam contrárias ao cumprimento do serviço militar, bem como em outros casos estabelecidos por lei, tem o direito de substituí-lo por serviço civil alternativo”.

O poder do povo legislar

Na prática, qualquer cidadão tem o direito de se dirigir ao Estado e propor uma mudança na lei, já que “as propostas de alteração da Constituição da República Popular de Lugansk podem ser apresentadas pelo Chefe da República Popular de Lugansk, pelo Conselho Popular da República Popular de Lugansk, e também por um grupo de pelo menos um terço do número estabelecido de deputados da República Popular de Lugansk Conselho da República Popular de Lugansk” (art. 85)

Um país em que tudo o que o PSDB fez no Brasil é crime

O poder operário se expressa em uma das mais importantes leis da República: a proibição das privatizações. 

Adotada em setembro de 2014, a lei que proíbe as privatizações substituiu a legislação ucraniana em um dos aspectos mais importantes: o caráter estatal de boa parte da economia da República Popular, que assegura o poder do povo sobre o Estado e protege os interesses da população. Segundo o texto, as seguintes coisas não podem ser objeto de privatização: 

– empresas

– parcelas de terra

– habitação sob jurisdição do governo

– água e esgoto

– instituições educacionais, culturais e esportivas

– infraestrutura de gás e aquecimento

– eletricidade

Esses são os aspectos gerais que fazem do governo da República Popular de Lugansk um dos regimes mais democráticos do mundo.

O povo está armado e lutando por sua liberdade

Após a luta pela independência, iniciou-se um estado de guerra civil permanente contra o regime de Kiev que, por sua vez, se apoia em bandos fascistas armados. O povo da República Popular de Lugansk permaneceu de armas na mão e continua a lutar por sua liberdade até hoje. Ao contrário do que dizem as mentiras contadas sistematicamente pela imprensa burguesa internacional, a luta em curso é uma luta pela autodeterminação do povo de língua e ascendência russa que decidiu se separar da Ucrânia por se ver diretamente oprimido pelo regime semifascista que subiu ao poder com o golpe de 2014.

O povo armado de Lugansk está organizado em uma milícia popular que trava uma luta pela defesa de seu território contra ataques covardes desferidos pelas forças armadas ucranianas. É fácil comprová-lo nas ruas, onde a maioria das pessoas que circulam são mulheres, crianças e idosos e os homens adultos, em grandes quantidades, andam uniformizados, quando estão de folga, entre uma ida e outra para o front.

A Operação Militar Especial russa começou em um momento decisivo. Após oito anos, Kiev se preparava para investir militarmente contra as repúblicas do Donbass. Passados três meses do seu início, a operação do governo Putin se revelou essencial para garantir a sobrevivência dos quase quatro milhões de russófonos oprimidos pelo regime ucraniano na região. 

Que os povos do Donbass possam gozar livremente de sua independência frente à ditadura de Kiev e decidir, por sua própria vontade, aderir à Rússia quando conseguirem finalmente se livrar dos fascistas. Essa é a vontade do povo de Lugansk expressa mais de uma vez nas ruas, nas conversas que tivemos com inúmeros cidadãos, representantes dos sindicatos, do governo e da milícia popular. Essa é também a vontade dos revolucionários brasileiros que vieram aqui para ver com seus próprios olhos a classe operária no poder.

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