Em 2002, a imprensa estava preocupada em fazer a lista dos erros de português que cometia o operário que acabava de ser eleito presidente do país. A burguesia estava muito incomodada com a fala do Lula, que, a propósito, sempre teve grande capacidade de se comunicar com o povo, ao contrário dos almofadinhas formados na cultura coxinha.
O dono da Folha de São Paulo, por exemplo, chegou a perguntar ao próprio Lula se ele sabia falar inglês, o que seria uma espécie de requisito mínimo para ser presidente. Sim, era uma tentativa de humilhá-lo, e não, ele não sabia, mas, mesmo assim, não só foi eleito como falou com líderes do mundo inteiro e foi respeitado por todos eles.
Vinte anos depois, o português do Lula não fica devendo nada ao dos jornais da burguesia, que, no entanto, continuam querendo tolher a fala do ex-presidente, um de seus principais ativos na campanha eleitoral. A Folha, em sua algo hesitante adesão ao identitarês, agora crava que Lula cometeu “escorregões” na novilíngua dos “novos tempos”, expressão usada pelos repórteres para denominar esta quadra reacionária que dá uma demão de verniz moral na velha censura dos governos autoritários.
Lula disse que poria um índio no seu ministério para cuidar de assuntos relacionados à demarcação de terras e outras reivindicações da população indígena. Pouco importa a proposta em si ou o que Lula pretenda fazer. Ele mereceu repreensão por usar o termo “índio” quando deveria, supostamente, ter dito “indígena”. Rigorosamente, “indígena” é aquele que nasceu no país em que habita, donde os brasileiros natos também poderem reivindicar para si o termo, cujo antônimo, aliás, é “alienígena”.
Mais bizarro é o caso de “escravizado” no lugar de “escravo”, uma vez que o termo é derivado do verbo “escravizar”, o qual deriva de… “escravo”, que, por sua vez, vem de “eslavo”, o que se explica pelo fato de os germanos e bizantinos terem escravizado grande número de indivíduos eslavos na Europa Central durante a alta Idade Média. Os identitários, que gostam tanto de buscar o significado oculto das palavras, pecam pela superficialidade, o que só reforça a sua falta de consistência.
Além dessas bobagens, Lula está ouvindo o apito da censura até mesmo às suas figuras de linguagem. Quando diz que o povo vai voltar a comer picanha e tomar cerveja aos domingos, aparece a patrulha do vegetarianismo-veganismo e os moralistas que acham que ele estimulou a ingestão de bebida alcoólica. Ninguém seria tão tolo a ponto de não entender que Lula quer que as pessoas voltem a poder comer o que bem quiserem, porque o problema concreto da população, assolada pelo desemprego e pela inflação, não é a escolha do cardápio, mas o dinheiro para comprar comida.
Até o “tesão” do Lula virou politicamente incorreto, pois, segundo a matéria da Folha, as mulheres se sentem ofendidas só de imaginar a coisa. Por certo, a Liga das Senhoras Católicas fez escola entre as identitárias. Se Lula sucumbir a essa pressão do identitarês, a campanha e o eleitorado vão mesmo perder o “entusiasmo”. A quem aproveita isso? Adivinhe.